Sinto necessidade de fazer alguns esclarecimentos quando me posiciono contrário à pauta do movimento LGBT no Supremo, que é a de ver reconhecida a omissão legislativa de proteção penal desse grupo.
Primeiramente, compartilho da visão de carência de tutela legal e judicial de todas as minorias. Quanto aos LGBTs, especificamente, há uma carência enorme, que se soma aos problemas que vão desde afastamento familiar à criminalização e verdadeiro extermínio.
Não compartilho, no entanto, da estratégia política de recorrer ao Judiciário, especialmente ao STF, para reconhecimento de tutela penal. Trata-se de uma batalha que se enfrenta no âmbito moral a partir do (e pelo) Direito. É sobre isso que venho escrever, com humildade do lugar em que falo, assumindo a possibilidade de equívoco e aberto ao diálogo.
A impressão que tenho é que o pensamento progressista, de modo geral, desde o fim da Guerra Mundial, tem visto no Direito a salvaguarda de muitas pautas e avanços, levando para o campo discursivo jurídico a luta política.
Embora eu não deixe de reconhecer o campo do direito como um local de luta política, os últimos acontecimentos no Brasil e no mundo têm mostrado esse deslocamento estratégico, e estamos vendo que o campo das ruas, ou da política propriamente dita, tem sido dominado pelos setores reacionários, inclusive por grupos que negam a própria tradição jurídico-democrática liberal dos últimos 75 anos.
E o Judiciário? Trata-se de mais um espaço de poder e, vale dizer, sempre foi aliado dos grupos dominantes na política nacional. A ditadura fechou o Congresso Nacional mas não o Supremo. Isso não lhe diz nada?
E vivemos a prevalência do discurso jurídico-formal como instrumento de validação da política dominante. Em outras palavras, a política hoje precisa do atestado de validação do jurista. Nesse contexto, o poder Judiciário chama pra si parte maior do bolo da política.
Como dizia Ruy Barbosa, a pior das ditaduras é a do Judiciário, pois contra ela não há a quem recorrer. É por isso que na teoria política, ao Judiciário cabe a última voz, mas menos poder prático.
Na carência de legitimidade dos poderes executivo e, principalmente, legislativo, o Judiciário ocupa o espaço, e o Supremo fez isso muito bem nos últimos anos. Até pouco tempo, ninguém sabia o nome dos ministros, muito menos acompanhava sua pauta.
Aí que entra a jogada. O poder Judiciário, no frigir dos ovos, representa que interesses? Por que a elite burocrática (que prefiro chamar de aristocracia brasileira) vai representar os interesses de base popular e efetivamente democrática? Por que, então, recorrer a essa parcela de poderosos para conquista de direitos, especialmente das minorias? Em pleno 2019, depois de tudo que acompanhamos desde 2016, a esperança nessa seara não parece ser só ingenuidade, mas também sectarismo proposital.
Não vou entrar aqui na função derradeira do direito penal, mas vou deixar alguns questionamentos.
Se o Supremo, a pretexto de ouvir o povo, pode ampliar o sentido de discriminação racial para fins penais, por que não pode mudar o sentido de trânsito em julgado? Se pode aplicar analogia para criminalizar alguns, por que não poderá para outros? Se o movimento LGBT pode invocar o valor simbólico do Direito Penal, utilizando-o como campo de batalha moral, por que os evangélicos não podem fazer isso com a questão do aborto ou das drogas?
Na minha visão, o argumento político que enfatiza o Direito Penal enquanto representação da moral mais adequada enfraquece os argumentos de outra natureza, como da eficiência e função prática e real decorrente da aplicação imediata dos poderes punitivos, como a polícia e o Judiciário.
Mas não só isso. Procure saber quantas condenações há por injúria racial e, especialmente, crime de racismo. São números desprezíveis, com processos que mostram a resistência desse Judiciário conservador em aderir a essas pautas, mesmo em forma de lei*.
O que quero dizer que é: Pode-se até ter a sensação de vitória, na abstração das ideias e de palavras bonitas na eloquência do Barroso. Na prática, isso dá gás pra esse mesmo Barroso amparar-se na “demanda popular” para endurecer o sistema penal contra negros e marginalizados em geral, como parte dos LGBTs, ainda que de forma indireta.
Ao mesmo tempo, me sobe o sangue quando vejo evangélicos utilizando dos princípios da liberdade de expressão e da liberdade religiosa para negar qualquer avanço na pauta LGBT. São os mesmos que ficam ofendidinhos quando são chamados de tomador de grana de fiel¹, estelionatários e charlatões. Os católicos, talvez em menor grau, recorrem ao mesmo argumento, utilizando dos crimes de vilipêndio e ultraje a culto para reprimir a liberdade de expressão de grupos opositores. O mesmo vale para policiais e burocratas de toda sorte (como os juízes)² que escondem seus abusos atrás do medo causado pelos crimes de desacato e desobediência.
E aos que sempre aplaudiram os avanços punitivos via Judiciário e que agora estão contra a pauta LGBT, meu singelo sentimento de desprezo. Não me alio a esse tipo de oportunismo e hipocrisia. Se votamos juntos aqui, lhe asseguro que é por razões diversas.
Pode-se aceitar de vez a luta e partir para a disputa moral em todas as frentes, judiciário, legislativo, ruas etc, sem um trabalho voltado para a base? Pois a impressão que tenho é que essa talvez não seja a melhor jogada: a de ganhar o STF e junto perder na base e no legislativo, pois é o que me parece mais provável de acontecer.
O que acredito é que, mesmo havendo o que o mov. LGBT pode chamar de avanço, isso vai vir com um preço. E caro. O STF vai chamar cada vez mais para o si o poder, principalmente o punitivo, grande responsável pelas mais significativas violações às liberdades e à vida.
A hashtag #criminalizaSTF não é somente um pedido de ruptura da legalidade mais basilar do Estado democrático de Direito, é a abertura para o absurdo, na confiança cega em um poder Judiciário que, historicamente, sempre se aliou ao que temos de mais podre na política.
A ampliação do Estado Penal, dos poderes punitivos, favorece quem? E a quem prejudica?
* fonte Tese de Hector Vieira
¹ Minha homenagem aqui ao Boechat.
² Aqui preciso fazer uma ressalva, principalmente para os mais sensíveis. Falo com generalizações inevitáveis para facilitar a mensagem. Há excelentes policiais e juízes, e religiosos muito tolerantes. Se você é um, não se ofenda, ok?