Artigo de Ferrajoli

Deixo aqui a digitalização do artigo de Luigi Ferrajoli publicado na revista “Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade”, Ano 07, número 12, 2002, Editora Revan.

FERRAJOLI Luigi – A pena em uma sociedade democrática

O juiz pode manter a prisão preventiva quando MP e Defesa requerem a liberdade?

O procurador Abrão Amisy Neto, no twitter, levantou a seguinte questão:

A dúvida é: MP requer a conversão da prisão. Juiz determina. Tempos após, a defesa requer a revogação da custódia. MP é favorável, por compreender não mais subsistentes os requisitos. O juiz é obrigado a revogar, sob pena de afrontar o “sistema acusatório”?

O prof. Guilherme Madeira respondeu que “Pelo 316 caput, entendo que não“. O procurador retrucou concordando.

Aqui dou meu pitaco.

Primeiro vamos ao texto legal:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

O termo “de ofício” que aparece no início do dispositivo se estende para a segunda parte, quando fala em decretar novamente a prisão?

Eu entendo que não. Por quê?

Vamos ao 311:

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.   (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)       (Vigência)

Agora compare com o antigo 311, revogado:

Art. 311.  Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. (revogado)            

Repare que a redação do novo 311 retirou o termo “de ofício”! Isso indica claramente que decretação de prisão preventiva não pode se dar de ofício, dependendo obrigatoriamente de pedido externo.

Mas não é só isso.

O art. 3º-A do CPP, positivando o princípio acusatório, dispõe, na parte final, que o juiz não substituirá a acusação na atuação probatória. Por que não poderia substituir na atuação probatória, mas poderia na questão da prisão preventiva?

O novo 311, portanto, inovando, não coloca o termo “de ofício”, como em outras situações. E, pela inteligência da lei, entendo que se o juiz não pode substituir a acusação na atividade probatória, também não o pode para decretação da preventiva. As razões que justificam as duas são quase as mesmas.

O 316 usa o termo “de ofício” para revogar, na 1ª parte, e não para decretar de novo (na 2ª parte), sob pena de contrariar o 311 e sua inteligência, bem como do novo 3º-A.

As novas razões a q o 316 se refere não devem ser buscadas de ofício pelo juízo.

E a expressão “sobrevierem” do 316 me sugere a hipótese não de manutenção da preventiva pelas razões da 1ª prisão, mas de decretação de preventiva após soltura pretérita, com inéditas razões ao caso.

Não havendo fundamento reconhecido pela acusação acerca da manutenção da preventiva, o juiz se encarregará de buscá-lo por si só, criando espaço de narrativa próprio em oposição às partes, adversárias no processo.

Isso não só antecipa a decisão, como o juiz se coloca como outro oponente da defesa, reconfigurando o jogo processual e rompendo com a paridade justa de armas

Além disso, pode configurar antecipação de pena, principalmente se o rumo do processo anuncia regime semiaberto ou aberto na eventual condenação.

A saída poderia ser a consulta a órgão superior do MP, buscando lá a narrativa.

O que está em jogo na discussão sobre a execução provisória

Faço aqui uma síntese da discussão sobre a prisão em segunda instância e o que está em jogo no debate. No entanto, me restringi ao aspecto normativo.

A Constituição Federal determina que o processo penal tenha matriz acusatória, com presunção de inocência*, separação clara das funções de julgar e acusar, além de condicionar a punição a criminosos ao devido processo legal e à formação de culpa.

Para se punir, exige-se não só o julgamento de mérito, mas o cumprimento do devido processo legal, o que significa haver sido respeitados todos os direitos do acusado. A propósito, é daí que se alimenta a legitimidade do poder de punição do Estado, o que chamamos de pretensão punitiva.

 

A liberdade para o inocente é a regra

O art. 5º, LVII, que diz que: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, junto a outros dispositivos, indica que no processo penal a regra é a liberdade.

Ou seja, a exceção é a prisão, que deve estar de acordo com as disposições legais.

Há basicamente dois gêneros de prisão: A prisão cautelar (flagrante, preventiva ou temporária) e a prisão pena*.

A cautelar não pode ter finalidade punitiva e ocorre não porque o sujeito é culpado, mas por necessidades específicas, e depende de fundamentação especial pelos juízes.

A prisão pena, ou prisão penal, é aquele decorrente da condenação, ou seja, a efetiva punição ao condenado.

O dispositivo é claro em dizer que o status de inocência se mantém até trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ou seja, até o final do processo após todos os recursos cabíveis. A partir daí tem-se a declaração de culpa e a possibilidade de execução da pena.

 

O Código de Processo Penal e o efeito suspensivo

Na lei processual infraconstitucional temos: o art. 283 e o art. 637.

Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.           (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Art. 637.  O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.

O art. 283 apenas reproduz a CF, e prescreve as possibilidades de prisão de alguém. Veja que não há ali menção à execução provisória da pena, muito menos há qualquer referência ao momento para isso (seja após 2ª instância ou após o STJ). (Boa parte do problema causado pelo Supremo com o entendimento pró execução provisória é a insegurança jurídica causada sobre isso. Não há na lei uma regra clara para a execução provisória. Na verdade, só há uma regra exposta e bastante clara: execução somente após o trânsito em julgado).

Muitos evocam o art. 637 para justificar a execução provisória, pois ele diz não haver efeito suspensivo no Recurso Extraordinário. Isso significa que se o acusado recorrer ao Supremo com esse recurso, sua pena deverá ser aplicada/executada.

Com foco no art. 637, a tese de execução da pena após julgamento do Recurso Especial no STJ faz certo sentido.

Acontece que o dispositivo é original do código, datado em 1941, período em que prevalecia outro sistema processual, com pouca força do princípio da presunção de inocência e pouca relevância para as formalidades processuais, ou seja, com compreensão de um ‘devido’ processo legal muito mais frouxo do que na atualidade.

O código é silente quanto ao Recurso pro STJ justamente porque em 1941 sequer havia STJ e os critérios para os recursos aos tribunais superiores só ganharam forma mesmo após a CF/88. O art. 637 se mantém na lei por pura inércia, sendo só mais um ingrediente de um código colcha de retalhos, cheio de incoerências e contradições.

Pela interpretação sistemática, entende-se que o art. 637 não foi recepcionado pela CF/88. Em outras palavras, não estaria compatível com nossa Constituição, não fazendo sentido sua aplicação. Não há revogação expressa, mas tácita.

Esse quadro legislativo/constitucional pode mudar?

Há dois movimentos: um busca mudar o art. 283, criando-se nova possibilidade de prisão: a execução provisória após julgamento em segunda instância.

O outro movimento é por Emenda Constitucional (EC), para alterar o art. 5º no inciso LVII.

E quais são os problemas?

Alteração do art. 283

Pode uma lei infraconstitucional dizer ser possível a execução provisória da pena de um condenado, mesmo a Constituição falando que o sujeito ainda não é culpado?

Quem defende essa tese não vê incoerência na prisão-pena de um inocente, e usa como fundamento a possibilidade de prisão cautelar. “Se é possível prender alguém com status constitucional de inocente em prisão preventiva, por que não pode para prisão pena?”

O ponto é que o inciso LVII não é só um princípio, mas uma regra. Princípio é algo abstrato, e só é efetivado quando acompanhado de determinadas práticas. A regra é justamente: punição é só para culpados, e antes da culpa pelo trânsito em julgado só é possível as prisões cautelares, que não devem ter função punitiva.

Na realidade, essa alteração do 283 só tornaria sem efeito prático o princípio e a regra da presunção de inocência previsto na Constituição. Em outras palavras, sua força normativa seria esvaziada, fazendo prevalecer o sentido de uma lei inferior em detrimento da superior. É um jeitinho, uma forma de mudar sem efetivamente mudar. 

O inciso se manteria lá, mas sem força normativa, sem efeito prático. O problema de se separar a ideia de presunção de inocência com prisão é esse. É justamente a relação entre presunção de inocência com prisão que o princípio ganha sentido, razão de ser. Sem isso, ele é só abstrato e vazio.

Alteração do inciso LVII do art. 5º via PEC

Outro caminho sugerido é por Emenda Constitucional. Uma PEC poderia pedir a alteração do inciso LVII.

O ponto aqui é outro.

Há o entrave da cláusula pétrea. O art. 60 §4º, no tópico que regula as Emendas Constitucionais, previu a vedação de alteração daquilo que o constituinte entendeu como a alma da Constituição. São as cláusulas pétreas.

  • 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.

Há quem entenda o dispositivo acima de forma restritiva. Não pode haver alteração dos direitos fundamentais a não ser para ampliá-los. O art. 5º inteiro está sob essa proteção. E, de fato, desde 88 nunca houve alteração dos direitos fundamentais.

Essa interpretação rechaça a PEC para mudar o inciso da presunção de inocência. Se ela passar, seria ela própria inconstitucional.

Do outro lado, há quem defenda a possibilidade de alterar o inciso LVII porque a PEC não aboliria o princípio. (Quem defende a possibilidade de PEC para qualquer questão simplesmente ignora o art. 60 §4º, e sequer merece menção).

A CF fala, no entanto, em tendente a abolir. Não é só aboli-lo, mas mitigar seu âmbito de incidência.

Fato é que a regra de prisão para fins de punição somente após formação de culpa com o trânsito em julgado seria extinta. Aliás, ainda que se entenda que a presunção de inocência seja mantida, ela terá sua força e alcance diminuídos.

No meu entender, o constituinte criou esse escudo justamente para impedir esse tipo de iniciativa.

Abrir essa brecha seria exatamente abrir o caminho necessário para o rompimento do projeto político da CF de 1988.

Se quiser ler mais, você pode acessar os seguintes posts.

Qual a diferença entra as prisões cautelar, processual, provisória e preventiva?

Presunção de inocência

Por que o escudo do art. 60 § 4º?

Comentário sobre a decisão do Supremo

Primeiras impressões sobre a nova lei de abuso de autoridade

Não é incomum parte dos setores progressistas caírem na tentação do punitivismo. Sempre vejo com dois olhos atentos qualquer medida criminalizadora, buscando compreender sua dimensão para além do mero simbolismo penal e da demagogia legislativa.

A ideologia punitivista consiste na crença de que aumento de penas, novas previsões de crimes, flexibilização de direitos fundamentais ou de garantias processuais – ou seja, o rigor penal – são as principais armas no combate à criminalidade.

Os efeitos da intensificação de processos de criminalização não necessariamente resultam em diminuição de criminalidade. Prova disso é a própria lei de drogas de 2006, cuja aplicação “rigorosa” é a grande responsável para o processo de encarceramento em massa que vivemos. Seu resultado no combate à criminalidade é até irônico.

A inflação penal é instrumento de uma política criminal seletiva, ineficiente, arbitrária e amplamente condicionada à política de contingência, além de ser um meio de reforço das instituições policiais e judiciais no âmbito do poder público.

Não entendo porque a lei Maria da Penha (2006), uma das leis que gerou verdadeiro impacto social e institucional, deixa de ser lembrada nesses momentos. A lei (até 2018) não previu nenhum crime novo! Tampouco se pautou pelo incremento de penas severas ou previu restrições a direitos fundamentais ou garantias processuais. Ao contrário, focou em possíveis políticas públicas, com preocupação constante com as vítimas. A vítima de crimes, essa figura que cada vez mais deixa de ser importante para o direito penal contemporâneo…

A nova lei de abuso de autoridade foca no direito penal simbólico, fruto de uma ideologia punitivista que ignora o real funcionamento da política criminal judicial. Encantou até mesmo a esquerda e setores genuinamente preocupados com a delinquência das autoridades.

A nova lei ignora a racionalidade de um processo penal de matriz democrática. Vou exemplificar.

Como impedir a produção de provas ilícitas? Criando-se a regra de exclusão e inutilização da prova ilícita! Se a solução para o problema de provas obtidas ilegalmente fosse seu aproveitamento junto à punição do infrator, qual seria o resultado?

Como garantir que o direito ao silêncio seja preservado? Impedindo o juízo de usar o silêncio como prova da culpa. Como se faz isso? Anulando sentenças que se valem do silêncio para condenar. Aliás, é sempre bom que se diga (silêncio não é prova de fato, logo, não pode ser prova de culpa).

Isso vale para qualquer procedimento ilegal que contrarie atos previstos em lei. Como garantir a correta aplicação da norma? Anulando atos, excluindo dos autos, etc.

Veja, não é que eu não reconheça a alta delinquência na atividade policial e o abuso na prestação jurisdicional. Eu até concordo com a criminalização de algumas condutas que previstas na nova lei. No entanto, a solução está longe, muito longe, da mera criminalização.

Veja o art. 22 da lei.

Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

  • 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem:

I – coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;

Vamos aos fatos. Por que essa prática de entrada abusiva em domicílios é tão recorrente? Não é porque temos aos montes policiais de má intenção por aí, que contrariam a lei deliberadamente. Mas simplesmente porque é uma prática amplamente aceita e acolhida pelos juízes!

Quando um bom advogado consegue expor a ilegalidade, argumenta pela nulidade do ato e, consequente, das provas obtidas em decorrência da ilegalidade.

Agora, quando o advogado alegar o abuso, o juiz se deparará não só com uma possível consequência processual que já estava disposto a desconsiderar, mas se deparará com uma denúncia de crime!

E o reconhecimento pelo juízo de uma ilegalidade comum como essa (invasão de domicílio para coleta de prova) servirá como notícia-crime? Haverá notificação ao MP? Não se sabe como será isso.

Tenho receio de que o resultado macro da lei não será a inibição do abuso, mas o contrário! Poderemos ter a expansão, no âmbito na validação judicial, desse tipo abuso! Ou seja, o juiz, para não ter que reconhecer eventual prática de crime, poderá se inclinar no sentido de validar o abuso.

Há intensa produção acadêmica sobre os efeitos da implementação das audiências de custódia, mas posso apontar com certeza que ela gerou muito menos resultado do que o esperado na questão de controle da atividade policial. Arrisco dizer que todo o avanço com as audiências de custódia foi compensado pelo seu uso político de grupos que rechaçam os direitos humanos, e que buscam verdadeira imunidade policial.

Já escrevi aqui sobre a falsa impressão de que há excessiva punição a policiais inocentes. O que temos, na verdade, é ampla impunidade de policiais corruptos e assassinos, o que se dá por meio de autos de resistência, e falta de controle externo efetivo por parte de um leniente Ministério Público.

Há certo vitimismo no discurso policial, como se sofressem perseguição social, legal, judicial e do MP. Mentira.

Mas eles não estão de todos incorretos. Há sim excesso de sindicâncias, procedimentos administrativos, perseguição interna, seletividade e jogo político. Policiais, inocentes e bandidos, não alvo de uma política de controle perversa e ineficiente, mas que não refletem em reais condenações. Seus efeitos quase sempre se dão no âmbito da própria corporação, no nível administrativo.

Acredito que é o que vai acontecer com a nova lei de abuso. Punições reais só para bodes expiatórios, perseguidos, selecionados e azarados. A cultura institucional de abuso que existe permanecerá intacta, se não finalmente trazida das sombras à luz da validação judicial.

Outra questão é na ordem da dogmática. A lei exige que façamos uma distinção entre a produção do resultado por motivação não dolosa do dolo de praticar o crime. Nesse ponto, vale a menção ao art. 9º da lei.

Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.’

Isso significa que nem sempre um juiz que prolata uma decisão que decreta uma prisão preventiva posteriormente reformada cometerá o crime. Óbvio que não. É preciso que haja o dolo de decretar uma preventiva que se sabia ser incabível.

No entanto, os critérios para decretação de preventiva são por demais amplos, e raramente é possível atestar objetivamente a ilegalidade de uma preventiva.

Isso é a preparação ideal de um cenário de cunho persecutório, que fará o atestado do dolo observando não o ato em si, mas a conduta geral ou a personalidade do juiz. E em um Judiciário de ideologia eminentemente inquisitória, sobrará para os juízes mais garantistas ou aqueles mais autônomos, que não se vinculam tanto às orientações jurisprudenciais superiores.

Vou repetir para ficar claro.

Em sentido amplo, a solução não deveria ser com amparo na ideologia punitivista penal. Ela vai ampliar a insegurança jurídica, a seletividade penal, a guerra de “denúncias”, o uso político do direito, e poderá ser verdadeiro instrumento de perseguição e não de justiça contra os verdadeiros abusadores.

Ao contrário, na minha visão, o caminho no combate ao abuso deveria ser mais de matriz processual, no âmbito da política pública, com vista à clareza nos efeitos legais das práticas abusivas, na definição de procedimentos policiais mais precisos, na heterogeneização do controle externo policial etc.

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P.S. irônico: aproveito a oportunidade para parabenizar as autoridades, especialmente os juízes, que finalmente conseguiram entender o princípio da taxatividade e suas possíveis consequências. Que nossa aguerrida dogmática se encarregue de criticar a nova lei de abuso sem que isso resvale para boa parte da lei penal aplicada cotidianamente às massas.

Barroso e o direito sofístico

Texto breve esta semana. Estou acompanhando o julgamento no STF sobre a questão das alegações finais de delatores e delatados. Já escrevi sobre o assunto aqui.

Com o objetivo de preservar todo e qualquer ato da Lava Jato, mesmo os abusivos, o Barroso precisa recorrer a argumentos moralistas e com base na vontade popular. Abre mão da técnica jurídica e passa vergonha perante seus pares, até mesmo do Alexandre de Morais, que teve que interromper o colega para mostrar o óbvio da diferença entre corréu e delator.

Quando que o direito virou uma questão de opinião? Qualquer pessoa agora se sente autorizada a falar sobre o direito porque, ora…, o próprio Judiciário cobra isso, e passa a depender da opinião pública cada vez mais.

Aí as faculdades de direito se tornam escolas sofísticas, e o que se aprende não é nada de técnico, mas as diferentes visões dos grupos que compõem o poder.

Ocorre daí uma consequente degeneração do direito que se contamina com o que tem de pior na política. Isso porque a “opinião pública” não pode ser jamais aferida de modo minimamente preciso (com exceções como no sufrágio), e quase nunca dura, porque muda conforme o vento. Além disso, ela é manipulável, não só pelo poder sobre as massas, como pelos sistemas de medição. A mídia dá o tom. No fim, a decisão não tem como deixar de ser a representação moral do julgador, e não a vontade da lei.

Não defendo um direito hermético, que não assume sua faceta política ou sua permeabilidade com o social. Ocorre que moralismos, punitivismo, eficientismo, não podem ser pilares da interpretação jurídica.

Barroso é o principal nome de um neoconstitucionalismo que, ao cinicamente afirmar valores na lei e na Constituição, busca na “opinião” popular o fundamento jurídico para suas próprias vontades.

Ao buscar o diálogo permanente com o povo, testando suas intenções e o sentido da “vontade geral”, se afasta sem constrangimento da lei. Escancara o que é por dentro, pois ao apontar qual a opinião pública, aponta para si. Assim, esvazia a razão de ser da separação entre direito e política, e se presta muito mais enquanto um advogado de grupos determinados do que um juiz que aplica a lei.

Princípio da consunção – quando se aplica?

O princípio da consunção ou da absorção é aplicado quando uma conduta, que é de início criminosa, constitui-se enquanto uma das etapas menores do iter criminis de uma conduta principal, resultando na absorção da norma definidora menor pela preponderante, a fim de que se evite a dupla e indevida incriminação ou o bis in idem.

Em outras palavras, a consunção ocorre quando uma conduta é ato preparatório, ato de execução, ou exaurimento de outra, principal em relação àquela.

A absorção de crime-meio enquanto etapa necessária

Por exemplo, se Caim desfere diversos golpes em Abel com o intuito de matá-lo, responderá somente pelo homicídio, que absorverá a lesão corporal. Nesse caso, a lesão corporal é etapa necessária para o homicídio. A lesão corporal é o crime-meio, sendo o homicídio o crime-fim, pois a lesão é a forma (o meio) de se alcançar o objetivo final. Mesmo se o agente altera seu dolo durante as agressões (inicialmente de lesão e depois de homicídio), responderá apenas pelo homicídio.

O mesmo ocorre com o furto em residência, em que a violação de domicílio é absorvida pelo furto. Ainda que exista o furto sem a invasão do domicílio, quando essa violação for etapa necessária para o furto, haverá absorção. Tem-se aí o antefato (antefactum) impunível.

O “crime-meio”, na verdade, antes de ser um crime propriamente dito, é uma conduta incriminável, isto é, passível de ser considerada crime quando for praticada isolada ou autonomamente.

Eventualmente, essas condutas servem como qualificadoras ou causas de aumento de pena dos crimes. É o caso da qualificadora da destruição de obstáculo no crime de furto. Por isso, é tecnicamente mais preciso qualificar o furto pelos meio empregado (furto qualificado pela destruição de obstáculo) do que tipificar a conduta em dois crimes diferentes (dano + furto).

A absorção de crime-meio enquanto ato preparatório

Outro exemplo é no caso do estelionato e do documento falso.

Se Agostinho vende um terreno a Tuco com um documento falsificado, tem-se apenas o crime-fim de estelionato, que absorverá o crime-meio de falsidade. No caso, o crime de falso se insere no contexto fático enquanto ato preparatório do estelionato. Ele não compõe a fase de execução do crime principal, como ocorre nos exemplos anteriores, mas como ato que antecede à execução do estelionato, se inserindo da etapa preparatória do crime.

Se um sujeito chega a arrombar o portão de uma casa ou chega até mesmo a entrar nela, mas por razões alheias à sua vontade não vem a consumar o furto, responderá por furto tentado, e não por violação de domicílio ou dano. Afinal, a execução do crime já havia se iniciado.

De modo diverso, a documentação falsa se insere na fase de preparação no contexto fático do estelionato, e não na fase de execução. Assim, se o sujeito for pego com a documentação falsa, responderá apenas pelo falso, e não pelo estelionato, cuja execução sequer começou.

O necessário exaurimento da potencialidade lesiva do crime meio

No entanto, a absorção se dará apenas no caso de exaurimento completo do crime-meio no crime-fim. Ou seja, havendo possibilidade de aquela falsidade gerar novos ilícitos, não haverá absorção, uma vez que ela pode ser considerada como fato independente do estelionato praticado.

Assim, para haver absorção, a conduta deve estar totalmente integrada naquela linha de ocorrência de eventos, não podendo existir de forma independente. Esse é o entendimento consolidado na famosa súmula 17 do STJ.

Simplificando: se o agente produz um só documento para praticar diversos estelionatos, ele deverá responder pelo crime de falsidade, pois nesse caso o crime não se exaure com a prática de um só estelionato. No entanto, se o documento falso é usado apenas para um estelionato, haverá o esgotamento de sua potencialidade lesiva, e aí sim se aplicará a consunção.

A mesma lógica se aplica ao crime de porte ilegal de arma de fogo e homicídio.

É possível que o porte seja mero ato preparatório para o homicídio, sendo a absorção aplicável. No entanto, se houver o porte ilegal fora da linha de desdobramento do homicídio, não se aplica o princípio, uma vez que o crime de porte pode ser tido por independente. Nesse caso, se diz independente porque o crime de porte ilegal já havia se consumado antes, sem qualquer nexo com o homicídio. Nessa hipótese, o porte ilegal foi ao mesmo tempo crime-meio de um homicídio e crime autônomo.

Uma coisa é o agente ter uma arma ilegal e um dia utilizá-la para matar alguém. Outra coisa é o agente conseguir uma arma ilegal com o exclusivo propósito de matar alguém.

Assim, no caso concreto, a absorção ou não do porte ilegal no crime de homicídio dependerá de prova da independência de uma conduta em relação à outra.

A absorção de crime por mero exaurimento

A consunção ocorre também quando um crime é mero exaurimento de outro. É o caso do furto e do dano subsequente ao bem furtado. Para o proprietário de um carro furtado, pouco importa seu destino, se o agente veio a usar o veículo ou veio a destruí-lo.

Nesse caso, o dano ao carro será mero exaurimento do crime de furto, vindo a ser por este absorvido. É o que chamamos de pós-fato (postfactum) impunível.

O mesmo se aplica a quem falsifica documento e vem a usá-lo na sequência. O crime de uso de documento falso (art. 304) é mero exaurimento do crime de falsificar.

Isso é assim porque o uso que se faz do carro furtado, ou o uso que se faz do documento falsificado, está na consequência imediata e direta do crime, sendo sua própria motivação. Exaurimento, pois.

Há um limite para isso, evidentemente. Se Nando furta a arma de uma pessoa, ou de uma loja, com o intuito de usá-la para matar Henry, haverá dois crimes, que podem ser compreendidos em linhas fático-temporais independentes.

Ao contrário, se, após uma discussão, Nando, usando de violência, saca a arma no coldre de Henry e vem a matá-lo, haverá consunção do crime de roubo no homicídio (excluindo-se a hipótese de legítima defesa, claro).

O posicionamento no iter criminis

Questão nada fácil é: como identificar qual o crime preponderante? Temos a seguinte linha:

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Na consunção, é preciso identificar qual crime absorve o outro, e isso significa que devemos encaixá-lo em algum desses momentos na linha do iter criminis.

Uma solução fácil que se costuma dar é a regra do crime mais grave: Crime mais grave absorve crime menos grave.

Não concordo de todo com essa saída. Aplicando essa tese, eventualmente o estelionato (art. 171 – pena mínima de 1 ano) seria absorvido pelo de falsidade documental (art. 297 – pena mínima de 2 anos). Aqui, perde-se conexão com o mundo fático e faz-se preponderar o arbítrio abstrato do legislador.

Outra solução seria a do dolo principal do agente. Por teleologia, o crime principal é aquele que está mais adequado ao dolo final do agente. No entanto, nesse caso, se um sujeito furta um bem de alguém com o objetivo de destruí-lo, responderá por dano e não por furto, de modo que o furto seria apenas meio para o crime-fim de dano.

Outra hipótese seria a do sujeito que resiste à prisão matando a autoridade. É um absurdo pensar que o homicídio (meio para o fim de resistir) deva ser absorvido pelo de resistência. Muito mais lógico é pensar que houve um homicídio do que uma resistência. Aliás, a motivação é quase sempre irrelevante para fins de adequação típica no homicídio, mas serve para qualificá-lo.

E porque a resistência não é absorvida pelo homicídio? A solução é interessante. Para impedir a absorção da resistência por outros crimes, o próprio legislador previu a cumulação de penas: As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

Isso quer dizer que a não aplicação da consunção depende de vedação expressa da lei, como feita no exemplo da resistência.

Outra saída seria a regra (quando aplicável) de que o crime de dano absorve o crime de perigo. A exposição ao perigo será sempre subsidiária ao dano causado.

Em síntese, por mais que os alunos não costumem gostar dessa frase, aqui vai: A resposta dependerá da análise no caso concreto, onde todas essas variáveis deverão ser sopesadas: gravidade e amplitude do delito, dolo final do agente, se o choque se dá entre crimes de dano e de perigo e também os bens jurídicos envolvidos, além dos mandamentos legais.

Acredito que até mesmo a situação das condutas incrimináveis em relação às vítimas deve ser considerada. Acho um absurdo priorizar o crime de falso (a princípio sem vítima) em detrimento do estelionato (com vítima), por exemplo.

No fim, o importante é conseguir identificar e posicionar as diferentes condutas no iter criminis. Havendo uma só linha fático-temporal, havendo mais de uma conduta incriminável, uma deverá ser considerada a consumação e as demais, absorvidas. Havendo mais de uma linha de desdobramento de ações, com independência entre as condutas, há crimes autônomos.

Bens jurídicos diversos?

Há quem defensa que não se aplica a consunção a crimes com bens jurídicos distintos.

Como disse acima, não descarto de pronto a análise dos bens jurídicos envolvidos para a decisão final sobre a aplicação ou não do princípio da consunção. Contudo, a tese que sugere a regra de que o princípio da consunção não se aplica a crimes de bens jurídicos diversos é muito pouco convincente.

A primeira razão é a de que os bens jurídicos não são legalmente definidos, e muitas vezes, sequer há consenso doutrinário acerca do alvo de proteção de um tipo penal. Veja, por exemplo, os crimes financeiros, os contra a paz pública e aqueles relativos a drogas.

A tese provavelmente tem intuito meramente punitivista, buscando a dupla incriminação de um sujeito por uma só sequência de fatos inseridos em um só contexto. Em termos práticos, a adoção da tese leva a quase inaplicabilidade do princípio da absorção.

Se uma conduta, ainda que incriminável, se insere de forma dependente à consumação de um crime, ela deve ser considerada como parte integrante de seu iter criminis, seja como ato preparatório, etapa de execução ou mero exaurimento. Jamais, contudo, deve haver a promoção de uma dessas etapas em crime autônomo quando não é.

Ora, ou a conduta é autônoma, devendo ser entendida como mais um crime, ou é parte integrante de outro, situação em que deve ser absorvida. A razão por detrás disso tudo é o princípio do non bis in idem, que impede a incriminação dupla pelo mesmo fato.

Sobre o juiz que desistiu

Se você tivesse nascido como o segundo ou o terceiro filho de uma família de classe média em meados do século XIX no Brasil, um dos seus destinos mais prováveis seria o de padre.

Como seminarista, aprenderia a alta doutrina da Igreja, se instruiria muito bem em clássicos e seria versado em mais de duas línguas.

Se for um garoto de fé que crê nas escrituras e no papel sacro da Igreja, vai acabar se decepcionando com o cotidiano da Igreja e com a politicagem dos bispos. Pode até não questionar sua fé, mas para continuar acreditando na liderança da Igreja nesta parte mundana e suja do universo, vai precisar abrir mão de certos valores e princípios.

Eventualmente vai aceitar a força da política de cima e se contentar com a profissão que lhe foi atribuída casuisticamente nesta sociedade, sem deixar é claro de desfrutar as facilidades e o poder que o ofício lhe proporciona.

Mesmo com potencial persecutório muito menor hoje em dia, padres abertamente críticos à Igreja são raríssimos, e a porta do protestantismo está sempre aberta, onde a liberdade é muito maior e o trabalho pode ser muito mais compen$ador.

Acontece que o padre de dois séculos atrás não tinha tantas opções de fuga como hoje, e o conforto do cargo e a resistência institucional da Igreja eram eloquentes demais, e acabavam por transformar padres fiéis e dedicados em meros burocratas acomodados.

Hoje, em paralelo, a aristocracia estatal “iluminada”, a famosa classe “média” alta, está nas profissões jurídicas. O direito é o caminho “escolhido” por dezenas de milhares de jovens todos os anos no Brasil, e uma carreira jurídica de Estado é o destino mais óbvio para aqueles com “procedência”.

Não duvido que muitos juízes e promotores tenham passado por algum momento de absoluta crença no direito e nas fortes instituições da República. Mas poder é poder, né.

E o juiz?

O caso que trago hoje é de um juiz de direito em Barreiras (Bahia) chamado Ricardo Costa e Silva. Não o conheço, e não sei de sua trajetória pessoal, mas sua sentença me fez imaginar esse cenário todo que descrevi acima.

Ricardo Costa e Silva é um juiz que, com certeza, estudou muito (apesar do azar no sobrenome). Conhece bem o direito e teve acesso às barreiras (desculpa o trocadilho) institucionais e a força do exercício puro do poder, contrárias ao próprio direito que jurou defender e a qualquer pretensão de racionalidade.

É um caso de um juiz que se cansou do direito. E se ele se aproveitou da situação para fazer uma crítica, fez errado, pois em sua missão não pode usar um outro ser humano como escudo ou espada.

O conforto da magistratura é grande demais para se perceber ou se sentir as forças do cárcere. É grande demais também para eventual fuga. É mais fácil sucumbir à condição de burocrata, confortável mas destituído de fé e dos princípios que, provavelmente, os levaram até onde está.

Espero de verdade que seja apenas o caso de um juiz que está na procura de vozes para compor em conjunto o seu dever, e não o caso de um juiz que simplesmente desistiu.

Abaixo a decisão do juiz, que mandou prender preventivamente o Douglas, mesmo após um flagrante absolutamente questionável.

No presente caso é nítido que a polícia desenvolveu superpoderes, como nos filmes de super-heróis, pois parou um carro, viu uma pequena porção de cocaína, adentrou na residência sem mandado, viu mais substância e um caderno que “provavelmente” é para o controle do tráfico.

Nunca concordei com referidas atitudes, mas o Ministério Público tem avalisado e não há qualquer punição em relação ao abuso de poder realizado, em nome da “saúde pública”.

Ao Poder Judiciário resta o serviço burocrático de homologar a atividade da Polícia Judiciária, pois se acontece diuturnamente, manter um posicionamento de relaxamento da prisão, por irregularidades no flagrante, é “remar contra a maré”, e confesso que cansei de defender algo que aparentemente sou voz única.

Desta forma, homologo o flagrante e para manter a ordem pública decreto a prisão do imputado, convertendo o flagrante em prisão preventiva.

Sentença do juiz de barreiras

O processo de referência, nº: 0301290-32.2019.8.05.0022, pode ser consultado no site do TJBA.

A alteração na Lei Maria da Penha e a mídia comprada

No dia 13 de maio deste ano de 2019, Bolsonaro sancionou a Lei nº 13.827/19, que insere o artigo 12-C na lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06).

O que a nova lei altera? 

A lei só é aplicável para cidades que não são sede de comarca, ou seja, onde não há juiz. Não havendo juiz na cidade, o delegado de polícia poderá determinar a aplicação de medidas protetivas de urgência em defesa da mulher. Não havendo nem juiz nem delegado de polícia na cidade, um policial poderá determinar a aplicação das medidas.

Em caso de aplicação das medidas protetivas por agente do executivo (policial), um juiz deverá manter ou revogar a medida dentro de um prazo de 24 horas.

Ocorre que o Jornal da Cidade, o mesmo jornaleco responsável por fake news, como a que inventou a mentira de que os cortes na universidades se deram por despesas injustificadas (veja a desmentira aqui), acabou de soltar uma opinião política na qual, somente agora, graças a Bolsonaro, a lei Maria da Penha será efetiva. Jornal mais parece propaganda do governo. Absoluta desonestidade.

Em 2017, o Congresso tinha tentado passar essa mesma alteração, que é uma pauta muito antiga. No entanto, pela redação falha e confusa, sua inconstitucionalidade ficou evidente demais, e Temer a vetou. O veto foi acertado, e devolveu a demanda pro Congresso arrumar, o que foi feito agora. 

Policiais comuns – e delegados – não podem determinar medidas restritivas de liberdade, atribuição exclusiva do poder Judiciário. Trata-se de garantia básica que vem lá da separação de poderes.

Acontece que, nesse Brasil imenso, muitas cidades não tem juiz, o que tornaria inviável a requisição rápida da medida protetiva de urgência. Para essas hipóteses, a nova lei prevê, corretamente no meu entender, a exceção. Mesmo assim, condicionou a validade da medida à apreciação de um juiz no prazo curto de 24 horas.

E é preciso lembrar que, em caso de flagrante delito, no caso de ocorrência de crime, a autoridade policial (e até mesmo qualquer um do povo) pode prender o infrator. No mesmo sentido, essa prisão está condicionada à validação pelo Judiciário. 

A notícia do jornaleco faz verdadeira propaganda política do governo, que, com desonestidade, se promove às custas da ignorância. 

Sobre o § 2º do art. 12-C: Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.  

O § 2º do art. 12-C merece outra discussão, e parece ter entrado de gaiato aí na alteração legislativa. Sua constitucionalidade é duvidosa. Tenho sempre muito receio de dispositivos normativos que atestam o óbvio: Quando há risco à integridade física da mulher e quando as medidas protetivas forem insuficientes, a saída é a medida radical mesmo, que é a prisão preventiva. Meu medo é que a nova lei seja mal aplicada, e a exceção prevista na lei seja usada como regra. 

 

Os 10 axiomas do garantismo penal

Aqui faço uma introdução à teoria do Garantismo Penal, que é sistematizada a partir de 10 axiomas. Confira:

Denomino garantista, cognitivo ou de legalidade estrita o sistema penal SG [Sistema Garantista], que inclui todos os termos de nossa série, trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível. Sua axiomatização resulta da adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, que expressarei, seguindo uma tradição escolástica, com outras tantas máximas latinas (p. 74 na 3ª ed. e p. 91 na 4ª ed.)

O que é axioma?

São proposições tomadas por verdadeiras, auto evidentes. No sistema garantista (SG), são premissas, pontos de partida que orientam todo o conjunto de argumentos e conclusões da teoria.

 Pra quê axiomas?

Sua intenção é criar uma teoria quase que fechada, com alta coerência interna. Para se questionar alguma conclusão ou argumento trazido pelo autor, é necessário questionar seus axiomas, pois dentro da base teórica que ele cria, é muito difícil apontar alguma incoerência lógica ou uma conclusão equivocada.

E se você discorda de algum ponto que ele levanta ao longo do livro, muito provavelmente é porque você iria discordar do próprio sentido de algum dos axiomas.

 Por que esses axiomas?

Ferrajoli não elege esses axiomas aleatoriamente, mas a partir de uma longa tradição político-liberal e dentro de um paradigma juspositivista.

 Como são dispostos?

Os postulados garantistas se dispõem na forma de um quiasma, um X. Repare como o termo final de um axioma é retoma para iniciar o seguinte. Um axioma não pode ser interpretado sem seu antecessor. Todo axioma deixa uma pergunta que é respondida pelo próximo.

Assim, o último axioma guarda consigo toda a carga de sentido, ou conteúdo, dos anteriores.

São 10 axiomas, sendo que os 6 primeiros se referem às condições penais, e os 4 últimos às condições processuais. Dos 6 primeiros, os axiomas A1, A2 e A3 se referem à teoria da pena, enquanto os A4, A5 e A6 se referem à teoria do delito.

  1.  A1) Nulla poena sine crimine 
  2. A2) Nullum crimen sine lege 
  3. A3) Nulla lex (poenalis) sine necessitate 
  4. A4) Nulla necessitas sine injuria 
  5. A5) Nulla injuria sine actione 
  6. A6) Nulla actio sine culpa 
  7. A7) Nulla culpa sine judicio 
  8. A8) Nulla judicium sine accusatione 
  9. A9) Nulla accusatio sine probatione 
  10. A10) Nulla probatio sine defensione

Em seu livro, Ferrajoli aprofunda o sentido dos axiomas nos capítulos 7, 8 e 9, da seguinte forma:

  • Capítulo VII. Da pena. A1, A2 e A3. Quando e como punir?
  • Capítulo VIII. Do delito. A4, A5 e A6. Quando e como proibir?
  • Capítulo IV. Do processo. A7, A8, A9 e A10. Quando e como julgar?

Vamos brevemente analisar cada um dos axiomas. Lembre-se que Ferrajoli dedica várias páginas para cada princípio. A leitura da fonte primária é fundamental.

A1) Não há pena sem crime.

Princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito.Ferrajoli faz remissão a Ulpiano e Feuerbach com o brocardo latino: Não pode haver punição sem fraude (crime). Sem a fraude, a punição é uma fraude. Mas o que define o crime? A lei.

 

A2) Não há crime sem lei.

Princípio da legalidade, no sentido lato e no sentido estrito. Só a lei pode prever crimes, não podendo eles estarem definidos em outro lugar. Mas qualquer conduta pode se tornar crime? Não. Deve haver a necessidade da lei penal.

 

A3) Não há lei penal sem necessidade.

Princípio da necessidade ou da economia do direito penal. O direito não pode incriminar condutas irrelevantes ou desnecessárias, devendo ser efetivamente considerado como ultima ratio. Mas que critério podemos usar para dizer que há necessidade de lei penal? O dano, a lesão a um bem jurídico.

 

A4) Não há necessidade [da lei penal] sem ofensa [a bem jurídico].

Princípio da lesividade ou ofensividade do evento. O direito penal não pode incriminar condutas que não ofendam um bem jurídico. E não basta qualquer lesão, sendo necessária uma lesão significativa. Mas quando podemos dizer que houve ofensa a um bem jurídico? Deve haver, no mínimo, a exterioridade da ação, materialidade da conduta.

 

A5) Não há ofensa a bem jurídico sem ação.

Princípio da materialidade ou da exterioridade da ação. Ferrajoli o tempo todo se refere a ação e omissão, ok? Na verdade, aqui há a vedação de se incriminar o pensamento, os atos preparatórios, a mera intenção. Mais importante é a vedação da incriminação de personalidade. O crime deve se referir a uma conduta, não a um agente ou um traço de sua personalidade, ideologia ou pensamento. Mas basta a ação? É precisão também responsabilidade, o dolo ou a culpa.

 

A6) Não há ação sem culpa.

Princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal. Veda-se a responsabilidade penal objetiva. É preciso que haja intenção do agente. Aqui se entra na questão da responsabilidade penal. E como podemos aferir a culpa de alguém? Pelo processo.

 

A7) Não há culpa sem processo.

Princípio da jurisdicionalidade no sentido lato ou estrito. O único meio adequado para se aferir a culpa de alguém é pelo processo. Mas qualquer processo? Claro que não, mas um processo que tenha acusação.

 

A8) Não há processo sem acusação.

Princípio acusatório ou da separação entre o juiz e a acusação. Isso significa que juiz e acusador não podem ser a mesma pessoa no processo. Há clara separação de funções. Quem julga não acusa e quem acusa não julga. Há aqui a principal distinção entre os modelos acusatório e inquisitório. Basta acusar? Não, tem que provar.

 

A9) Não há acusação sem prova.

Princípio do ônus da prova ou da verificação. Cabe à acusação provar o alegado. Sem prova não pode haver aplicação de pena. Mas de nada vale a prova sem uma defesa.

 

A10) Não há prova sem defesa.

Princípio do contraditório ou da defesa ou da falseabilidade. É a defesa que torna o processo válido. Só se a defesa puder se manifestar sobre uma prova, tendo real possibilidade de contraprovar o alegado, que ela poderá ser utilizada no processo. Para o SG, não basta o mero contraditório, mas a real possibilidade de contraprovar, de falsear a acusação. 

Baixe o livro do Ferrajoli aqui.

Bons estudos!

Se isso lhe foi útil, deixa um comentário?

Abraços!

É hora de falar da presunção de inocência

Com a prisão de Michel Temer e até mesmo com a dos possíveis assassinos de Marielle Franco, a militância memística da direita raivosa precipitadamente tentou apontar incoerência das pessoas que, como eu, defendem a presunção de inocência. Bom, pelo menos do meu ciclo de referência, apenas vi coerência, com críticas à espetacularização da prisão de políticos, a banalização da prisão preventiva e a influência da mídia e da opinião popular em casos penais.

Mas o que significa a presunção de inocência? Qual seu fundamento legal e qual sua importância histórica e política?

I. Dos modelos: autoritário ou liberal

Há, grosso modo, dois modelos de direito penal e processual penal: (a) um que tende ao direito penal máximo, sem garantias e que visa à segurança, à ordem e à total condenação de culpados; e (b) um que tende ao direito penal mínimo, com garantias e que visa à liberdade, contenção do poder e, especificamente, a não punição injusta de inocentes.

O primeiro modelo tem natureza autoritária, e enxerga a punição eventual de inocentes como mero efeito colateral. O segundo modelo tem natureza liberal, e entende que certo grau de impunidade é o preço a ser pago para evitar a incriminação de pessoas inocentes.

É claro que são apenas modelos teóricos, tratando-se apenas de uma polarização artificial com finalidade didática, mas que ajuda na compreensão dos modelos políticos implícitos nos sistemas.

Mas é fato que as democracias liberais optam pelo segundo modelo, em que o princípio basilar do processo penal é o da presunção de inocência. O contrário seria a presunção de culpabilidade, herança do modelo inquisitorial.

II. A mentalidade inquisitorial

A mentalidade inquisitorial ainda persiste não só no senso comum, mas no próprio Judiciário. Ela pode ser observada nos dizeres “onde há fumaça há fogo”, “quem deve não teme”, “se foi acusado é porque alguma coisa tem”, “quem cala consente” etc. São expressões típicas de pessoas com mentalidade autoritária.

Vincenzo Manzini, eminente jurista da Itália Fascista, era um crítico da presunção de inocência. Perguntava: “se presume a inocência do imputado, pergunta o bom senso, porque então ele é processado? (…) Ora, pode-se concluir que a experiência histórica coletiva mostra que a maior parte dos imputados é inocente?¹. Não há nenhuma coincidência entre o fascismo e a crítica à presunção de inocência.

De certo modo, a presunção de inocência é, de fato, anti-intuitiva, não só porque tendemos a confirmar a nossas hipóteses iniciais, mas porque há certa credibilidade no trabalho das polícias e no Ministério Público, sem mencionar, é claro, no prazer perverso no sofrimento alheio.

Nesse sentido, sendo somente uma abstração jurídica, por que afinal ele existe? Bom, a razão política já está minimamente colocada acima. Mas há duas razões extras que valem nossa reflexão.

III. O fundamento lógico da presunção de inocência

A presunção de inocência tem fundamento não só na opção política das democracias, mas tem fundamento filosófico.

Considere, por exemplo, que um inocente seja falsamente imputado de um crime. Se há presunção de culpabilidade, caberia a ele produzir a prova de sua inocência. Contudo, para a grande maioria dos casos, é impossível a prova do negativo, do que não existiu, de um fato inexistente. A prova negativa é chamada também de prova diabólica, pois coloca a parte em situação sem saída.

Na lógica inquisitorial e autoritária, contudo, a inexistência de prova tende a ser interpretada como prova positiva da existência do fato, seja por mera presunção ou por confirmar via convicção do inquisidor sua tese acusatória inicial. O silêncio ou a negativa é pior que a confissão, a diferença entre ser queimada morta e ser queimada viva.

Além disso, nos modelos democráticos liberais, há vedação de incriminações morais ou de pensamento, exigindo que os crimes se refiram apenas a fatos que materialmente alteram o mundo natural, deixando rastros, provas de sua existência. É o que chamamos de princípio da materialidade ou da exterioridade da ação, que, por sua vez, complementa o princípio da lesividade, que nada mais é do que o mandamento de que a lei só incrimine fatos que efetivamente causem alguma lesão significativa.

Assim, se o crime deixa rastros, há possíveis provas.

IV. Os corolários da presunção de inocência: as regras processuais

Daí entra a terceira razão de existência (a 1ª é a política, a 2ª é a lógica) do princípio da presunção de inocência. O princípio cria regras processuais, que balizam o sistema processual, criando obrigações e condições mínimas para a devida incriminação judicial e aplicação da pena.

Podemos chamar de corolários do princípio da presunção de inocência. Regras processuais que por derivação lógica decorrem do princípio.

A primeira, como você já deve ter percebido, é a de que o ônus da prova cabe à acusação. Simples assim. A prova incumbe a quem acusa. Até mesmo porque, se o sujeito de fato cometeu um crime, há provas de sua existência, e elas devem ser trazidas ao processo.

A segunda regra é a liberdade processual, também conhecida como excepcionalidade das medidas cautelares. Se o sujeito se presume inocente, qualquer medida que restrinja seu direito de ir e vir, desde a medida mais simples como dever de recolhimento noturno até a prisão preventiva, deve ser excepcional, devidamente justificada e evitada.

Outra decorrência lógica da presunção de inocência é o famoso in dubio pro reo. No caso de dúvida, ou não havendo certeza possível após a produção de provas, impõe-se a absolvição do acusado. Não é admissível que um juiz assuma o risco de punir um inocente.

Alguns incluem uma outra regra, que vale tanto internamente ao processo como fora dele: o dever de tratamento. O sujeito investigado ou acusado deve ser tratado como inocente, não só pelo juiz, mas também pelos policiais, pelo público em geral e pela imprensa.

Como consequência desse regra, deveríamos ter um cuidado maior por parte dos jornalistas na redação das matérias e, principalmente, nas imagens de prisões. Além disso, a polícia deve utilizar algemas somente quando necessárias e, no tribunal do júri, deveria ser possível ao réu vestir-se e apresentar-se como cidadão comum, e não como presidiário, o que afeta o julgamento dos jurados.

V. Juízes não aplicam a racionalidade do princípio

A prisão processual não pode se valer como punição. A punição de fato só é devida após a prova da culpa com trânsito em julgado, como ordena a Constituição. Assim, a prisão processual deve ter fundamento e função instrumental, outro que não a função punitiva.

Assim, por exemplo, se um juiz prende um réu preventivamente com fundamento no receio de destruição de provas ou perigo à vítima, tem-se que o sujeito deve ser posto em liberdade no momento em que a possibilidade real de destruição das provas deixar de existir ou quando a vítima não estiver mais sob risco.

Obviamente, na realidade, os juízes não cumprem com a racionalidade sugerida pelo princípio. Em vez disso, os juízes aplicam a prisão preventiva, basicamente, a partir de quatro critérios: reincidência, gravidade abstrata do delito, repercussão política ou midiática, e indícios fortes da ocorrência do delito na fase inicial do processo.

O problema é que a “racionalidade da prática” tende a elevar valores e práticas estranhas a um Estado democrático e liberal, fazendo com o sistema punitivo incida mais fortemente em crimes de massa (tráfico e roubo) e para fins de conveniência política.

VI. STF culpado?

Cesare Beccaria, pai do humanismo no Direito Penal, já em 1764 escreveu: um homem não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada.

A Declaração de Direitos do Homem, na França revolucionária de 1789, positivou o ensinamento de Beccaria no art. 9º: Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.

A presunção de inocência é prevista também na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, no art. 11.1, e na Convenção Americana de Direitos Humanos, no art. 8º.2.

Na Constituição Federal de 1988, o princípio é previsto no artigo 5º, inciso LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Não há qualquer diferença entre os termos não culpabilidade e presunção de inocência. São apenas termos diferentes para se dizer o mesmo. A razão para essa interpretação é a história do princípio, bem como seus fundamentos legais, políticos e filosóficos, trabalhados brevemente aqui neste post.

Como se observa, nossa CF/88, além de prescrever o princípio da inocência no inciso LVII, prescreve também, em âmbito constitucional, em cláusula pétrea, a regra quanto ao momento em que alguém deve ser considerado culpado, que é após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A maioria ocasional do STF de hoje, discordando do constituinte originário, resolveu mitigar a normatividade dessa regra constitucional simplesmente alterando o sentido de “trânsito em julgado”, abrindo a perigosa porteira de redução dos direitos fundamentais.

Para que serve o processo penal?

Tempos atrás, escrevi aqui no blog “Para que serve o direito penal?”. Hoje é dia de processo. Afinal, pra que serve o processo penal?

O processo penal é o meio pelo qual o Estado legitima sua pretensão punitiva.

O professor Aury Lopes Jr. diz que “o processo é o caminho necessário para a pena”, ou “não pode existir pena sem processo”.

Mas quando Aury coloca que não pode existir pena sem processo ele está falando, a rigor, em pena legítima. Isso porque pode haver uma penalidade, só que, sem o devido processo legal, temos mero uso ilegítimo da força, ou uma simples violência, uma violência estatal.

Calma. Segura aí. O que isso quer dizer?

A verdade é que entre uma AÇÃO e aplicação de uma PENALIDADE correspondente, há sempre um caminho.

Um pai, por exemplo, pode punir um filho por causa de um comportamento inadequado de várias formas: com chineladas, bronca, castigo etc. E o meio de cognição do pai para averiguar a existência (que chamamos de materialidade) do comportamento do filho também pode variar.

Suponhamos que o pai não tenha presenciado o comportamento inadequado do filho, tendo sido relatado a ele por meio de sua professora. O pai, nessa situação, pode depositar confiança no testemunho da professora ou pode, inclusive, questionar a criança sobre o porquê de sua conduta, oportunizando assim eventual defesa ou justificação do mini infrator (contraditório e ampla defesa). A criança pode negar a existência do fato, colocando em xeque a palavra da testemunha ou pode confessar a prática da infração, ainda que buscando justificá-la de alguma forma.

Ainda que o pai tenha presenciado a “infração”, aplicando uma penalidade sumária mesmo sem qualquer defesa à criança, há um juízo breve de cognição em que o pai avalia não só a existência do fato, mas também a reprovabilidade da conduta. De um modo ou de outro, há um caminho, um processo.

Ou seja, entre uma ação e uma penalidade correspondente há sempre um caminho. O caminho [o processo] pode ser, inclusive, por meio da aplicação de torturas, sem qualquer contraditório ou direito de defesa; pode ser por caminhos irracionais, com métodos que recorrem ao misticismo ou à pura retórica; pode dar mais ênfase na confissão, na prova testemunhal ou nas provas técnicas, enfim, pode ser trilhado de infinitas maneiras.

Entre DELITO e PENA, no entanto, assim compreendidos no seio de um Estado Democrático de Direito, não é qualquer processo [caminho] que é admitido, mas tão somente aquele que coaduna com os valores e princípios constitucionais.

Entre DELITO e PENA LEGÍTIMA, portanto, há somente um PROCESSO possível, aquele especificamente definido por lei. E não qualquer lei, mas a que guarda adequação com a Constituição Federal.

E mais do que mera adequação constitucional, é o processo que materializa os princípios constitucionais, tornando assim legítima a pena. Sem processo, a pena não é legítima, mas mera violência, ou como diria Aury, não é pena. Sem processo não há pena (legítima).

Alguns podem dizer que a função do processo é garantir ao réu seus direitos fundamentais. Isso não deixa de ser verdadeiro, mas mostra uma função secundária do processo, não respondendo por que se busca garantir os direitos do acusado. Se você chegou até aqui já deve ter entendido. O processo busca garantir os direitos fundamentais do acusado porque sem essas garantias não se pode dizer que a pena aplicada será legítima.

Outros podem dizer que a função do processo é alcançar a verdade sobre um fato. Isso é parcialmente correto, pois mais importante que se alcançar a verdade é como se alcançar a verdade. De nada adianta o Estado alcançar a verdade abusando de métodos ilícitos, como a tortura e a extorsão. Isso quer dizer que é pelo processo que se delineia o regime de verdade.

O processo penal determina uma forma específica de se contar uma história, e vem com regras e princípios próprios para tanto. Em uma democracia, o Estado não pode usar de quaisquer meios para se alcançar a verdade sobre um fato ou sobre um sujeito, sendo-lhe vedado utilizar de meios estranhos ao autorizado por lei. Mais do que isso, o Estado deve usar apenas meios racionais para atestar a existência de um fato criminoso, vedando os investigadores, acusadores e julgadores de utilizar fundamentos místicos, religiosos ou meramente morais. Mas esse assunto merece um texto só seu…

O processo, nesse sentido, é uma abstração, mas que é materializado pelo conjunto de normas e princípios que dão corpo a ele. A começar pela presunção de inocência, talvez seu alicerce fundamental. Esse princípio tem um fundamento político comum a todas as democracias contemporâneas: É preferível certa impunidade do que a certeza da punição injusta de inocentes.

Mais do que um princípio vazio, ele exige que cabe ao acusador o dever de provar, enquanto à defesa tem-se mera faculdade ou oportunidade. Ao mesmo tempo, a presunção de inocência determina também que, havendo dúvida, o juiz é obrigado é absolver o réu, exigindo grau suficiente de certeza para aplicação de uma pena. Em síntese, é da presunção de inocência que decorre seus dois principais – e mais conhecidos – corolários: ônus da prova para a acusação e in dubio pro reo.

E é importante que se diga: esse desnível entre as partes é apenas aparente, pois a verdade é que o processo cumpre também esse papel de tornar menos desigual as forças em disputa. Na situação em que o Estado acusador se ergue contra um único indivíduo, nada mais justo que, em caso de empate, se declare vencedor o mais fraco.

É pelo processo, portanto, que se materializa os princípios fundamentais, que são transformados em regras a serem seguidas. O contraditório, por exemplo, é materializado na norma que diz que o juiz não pode decidir com base em uma prova não analisada por uma das partes. A ampla defesa é garantida no interrogatório, fase obrigatória. A competência do juízo, no mesmo sentido, limita e delimita o poder de atuação dos juízes, gerando previsibilidade e segurança jurídica.

Assim, se respeitados todos os elementos legais que constituem o devido processo legal, o Estado pode aplicar a pena sobre o condenado sem que ele possa alegar sua ilegitimidade.

O contrário, por sua vez, é igualmente verdadeiro. Se o Estado não respeita o devido processo legal, a pena imposta passa a ser ilegítima, mero uso abusivo da força estatal, violência. Para se evitar isso que se utiliza a teoria da prova ilícita, sendo ela nada menos que instrumento punitivo e dissuasório para o abuso estatal.

É por isso, portanto, que o processo penal é o meio pelo qual o Estado legitima sua pretensão punitiva. Ou, em outras palavras, é o processo que transforma a violência do Estado sobre um indivíduo em pena legítima. É o processo que faz com que a pretensão punitiva, o direito de punir, exista. Sem o processo, não há direito de punir, mas uso abusivo da força, violência estatal.

Deixo, por fim, o questionamento do dia em matéria processual penal: Pode o réu abrir mão de um processo? Ou seja, pode o Estado aplicar uma pena legítima sem processo, quando o próprio réu assim deseja? Enfim, o processo penal é um direito do acusado ou um dever do Estado?

Processo Penal I – Plano de Curso

Olá, pessoal!

Disponibilizo aqui o plano de curso da disciplina de Processo Penal I. Vou atualizando semanalmente com os textos sugeridos para a disciplina e com sugestões de leituras complementares. 

Atualizado em 29/07/2022

Manuais indicados (por ordem):

  1. Aury Lopes Jr.
  2. Gustavo Henrique Badaró
  3. Renato Brasileiro de Lima
  4. Nestor Távora e Rosmar Alencar
  5. Eugênio Pacelli

Indicação: Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal (Luigi Ferrajoli) aqui

Para o trabalho final (OAT):

  • As misérias do processo penal – Francesco Carnelutti (Livro 1)
  • O santo inquérito – Dias Gomes (Livro 2)
  • O queijo e os vermes – Carlo Ginzburg (Livro 3)
  • Dos delitos e das penas – Cesare Beccaria (Livro 4)
  • O nome da Rosa – Umberto Eco (Livro 5)
  • O Processo – Franz Kafka (Livro 6)

No youtube:

  • Aula do Professor Aury Lopes Jr. Tema: a crise do processo penal: Link
  • Palestra Professor e juiz Alexandre Morais da Rosa. Tema: O jogo probatório no Processo Penal: Link

Tema 01 – Processo Penal, conceito e função

  • Texto 01: O Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumentalidade Garantista (Aury Lopes Jr.)

Leitura complementar:

  • Texto 02: A Função do Processo Penal no Estado Democrático de Direito (Luiz Gabriel Batista Neves)
  • Texto 03: Fundamento e Função do Processo Penal: A Centralidade do Juízo Oral e Sua Relação com as Demais Fases da Persecução Penal para a Limitação do Poder Punitivo (Vinicius Gomes de Vasconcellos)

Tema 02 – Modelos Processuais Penais

  • Texto 04: Acusatório versus Inquisitório (Lorena B. Winter)
  • Texto 05: O caso das Bruxas de Salem e a origem do plea bargaining norte-americano: contrapondo o entendimento dicotômico dos sistemas processuais penais (Sarah Ribeiro e Rodrigo Guimarães)

Podcast: EP 04 do podcast Curadoria de Processo Penal, sobre o caso das bruxas de Salém e os modelos processuais: com Rafael de Deus Garcia, Vinicius Vasconcellos, Sarah Ribeiro e Rodrigo Guimarães

Leituras complementares:

  • Texto 06: A Atuação Instrutória do Juiz no Processo Penal Brasileiro À Luz Do Sistema Acusatório (Aline Frare Armborst) 
  • Texto 07: A Cultura Inquisitória Mantida pela Atribuição de Escopos Metajurídicos ao Processo Penal (Leonardo Augusto Marinho Marques e José de Assis Santiago Neto)
  • Texto 08: Os três modelos de direito processual: inquisitivo, dispositivo e cooperativo (Fredie Didier Jr.)
  • Indicação de livro: Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais (Geraldo Prado)

Tema 03 – Os princípios processuais penais e o modelo garantista

  • Texto 09: Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal (Jacinto Nelson de Miranda Coutinho)
  • Texto 10O dress code do garantismo penal de Luigi Ferrajoli (Ana Cláudia Bastos de Pinho e Fernando da Silva Albuquerque)
  • Indicação de leitura: Cap. IX do livro Direito e Razão de Ferrajoli. Se preferir, leia o resumo do capítulo aqui.

Tema 04 – Lei Processual Penal no tempo e no espaço

Leitura dos manuais sugeridos.

Tema 05 – Investigação e Inquérito Policial

Leitura dos manuais sugeridos +:

  • Texto 11: O Papel do Inquérito Policial no Processo de Incriminação no Brasil: algumas reflexões a partir de uma pesquisa (Michel Misse)
  • Texto 12: Inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada (Henrique Hoffmann Monteiro de Castro)
  • Texto 13: (complementar) Na contramão do discurso midiático: uma perspectiva garantista da atuação do delegado ou da delegada de polícia (Soraia da Rosa Mendes e Patrícia Tiraboschi Burin)

Podcast: EP 06 – Tudo pode na extração da confissão? Sobre o método Reid, com Lívia Moscatelli, Rafael de Deus Garcia e Michelle Brito.

Tema 06 – Ação Penal

  • Texto 14 Uma polêmica sobre a teoria geral do processo (Aury Lopes Jr., Afrânio Jardim e Ada Pellegrini)

Tema 07 – Jurisdição e competência

Ler manuais atualizados!

Tema 08 – Teoria Geral da Prova e Prova ilícita

  • Texto 21 – Estudo sobre a verdade no processo penal (Denise Provasi Vaz)
  • Texto 22 – Sigilos constitucionais, prova ilícita e proporcionalidade (Elmir Duclerc)

Complementares:

A demagogia da lógica anticrime

Ensinar processo penal em 2019 não será tarefa fácil.

Nos últimos anos, especialmente desde a lava jato, o processo penal já tem se afastado demais dos manuais (e até da lei). Esses tradicionais aliados dos estudantes de graduação, mesmo os mais atualizados, já nascem defasados em relação à prática.

Sérgio Moro, o ex juiz federal que condenou Lula, hoje ministro da justiça, é a cara dessa transformação que, para todos os efeitos, pode ser chamada de antigarantista e eficientista. O que antes era a influência de um juiz popular hoje é a política de um ministro da justiça com base no Congresso Nacional.

O termo antigarantista se refere a uma série de medidas e princípios que vão de encontro à vertente liberal e antiautoritária de direito penal e processo penal. O antigarantista adora confissão “espontânea”, amplos poderes a juízes e a policiais, termos como ‘criminoso habitual ou profissional‘, crimes com termos abertos e penas elevadas.

Por sua vez, o termo eficientista se refere a uma ideologia penal que tem como norte a economia e a celeridade do processo punitivo em face de uma preocupação com qualidade jurisdicional. Eficientistas, por exemplo, são aqueles que, como Moro, adoram videoconferência e a ideia de acordos entre réus e Ministério Público sem um procedimento de averiguação do fato. 

A prisão de inocentes para os eficientistas antigarantistas não é senão mero efeito colateral de um tratamento penal forte, que se julga mais eficiente. E é?

Com toda a certeza não.

Sérgio Moro erra feio ao acreditar que a solução dos problemas se dá com mudanças legislativas. Fato é que mudanças legislativas têm efeito muito mais demagógico e simbólico, alterando as políticas públicas em matéria de segurança pública não no nível da eficiência (real), mas no nível de legitimação política. Essa dimensão, embora também importante, pouco significa em termos reais de combate à criminalidade.

Moro, ao dedicar sua estreia a responder aos anseios sociais que ajudaram a eleger Bolsonaro, opta pelo anti-intelectualismo que permeia todo o novo governo, ignorando o que a maioria dos especialistas vêm afirmando a tempos em matéria de segurança pública. Inclusive, quase em tom de deboche, o ex juiz deslegitima o conhecimento dos professores de direito penal na apresentação de suas medidas, todas na linha do endurecimento penal.

O ministro da justiça deveria sugerir mecanismos de desarticulação do crime organizado, o que necessariamente está atrelado ao superproblema do encarceramento. Poderia lidar com a questão da governança entre as instituições de segurança, pensando também em carreira e bem estar no trabalho policial. Poderia se preocupar com uma melhor articulação entre os saberes policiais e o acadêmico, dando ênfase no levantamento de dados sobre crimes. Poderia se preocupar com instrumentos sociais de prevenção ao crime em longo prazo, com enfoque nos juizados da infância e juventude. Poderia tornar as Polícias Civis ainda mais técnicas e as Polícias Militares mais próximas das periferias, onde elas têm baixa legitimidade. Enfim, uma séria de medidas…

No entanto, preferiu responder a uma mentira construída pela campanha do Bolsonaro: a de que policiais respondem criminalmente por agir em legítima defesa. Assunto sobre o qual já tratei aqui no blog. Moro busca, em tese, aumentar as hipóteses de excludente de ilicitude de policiais, inclusive afastando a incidência do tribunal do júri. Ou seja, mesmo já havendo elevados índices de criminalidade policial, Moro entende que é hora de passar o recado de que a abrangência de atuação será ainda maior.

Pouco se percebe que a delinquência policial está associada à falta de técnica, refletindo, na verdade, em ainda mais criminalidade urbana e letalidade policial (com mais morte dos agentes).

Moro busca instituir de vez o plea bargain (numa importação tosca do processo penal estadunidense), em que se dispensa o procedimento de averiguação da verdade fática quando o réu confessa a autoria do crime e fornece elementos de autoincriminação. Num Brasil em que o direito de defesa já é quase nulo, a despeito de uma arquitetura garantista, a adoção desse instituto vai servir apenas de linha direta entre a Polícia Militar e o sistema penitenciário.

Bom, ensinar processo não será nada fácil.

Cada vez mais é necessário buscar os elementos fundadores de um processo penal democrático, estudando o que diferencia um modelo de matriz autoritária do de matriz liberal.

É necessário compreender que a qualidade da jurisdicionalidade está atrelada à racionalidade e à técnica, à análise a partir de dados e fontes confiáveis, sendo inimiga da demagogia e do senso comum.

É preciso compreender como que o estudo com base em manuais e na legislação seca, ainda que em grande parte de matriz inquisitorial, apenas afastam o conhecimento jurídico médio da realidade. Tenho notado que verdadeiras atrocidades e irracionalismos acabam por se esconder por trás de uma moldura liberal garantista, que não é nada mais que fantasiosa, um escudo das velhas práticas punitivas no Brasil, justamente o que permitiu o atual quadro

Que a academia continue sendo um espaço de questionamento, tanto da política quanto do judiciário. Que a razão prevaleça sobre o senso comum e a demagogia.

Enfim, continuemos ensinando, pelo menos até sermos taxados oficialmente de doutrinadores.

 

Qual a diferença entra as prisões cautelar, processual, provisória e preventiva?

Há, grosso modo, dois gêneros de prisões: (1) a prisão pena, ou prisão penal; e (2) as prisões cautelares.

A prisão pena se refere ao cumprimento da pena definida na sentença que condenou o sujeito. Assim, em tese, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o sujeito passa a cumprir a pena estipulada.

As prisões cautelares, ao contrário da prisão pena, não tem – em tese – função punitiva. Como o próprio nome sugere, é uma prisão de cautela, acessória, instrumental, que cumpre uma função específica no processo penal ou no inquérito policial.

A prisão cautelar, portanto, não se aplica “porque um sujeito cometeu um crime”, mas para “assegurar o bom andamento do processo”, “proteger as investigações ou a vítima”, “garantir a ordem pública” etc.

Ou seja, embora ela seja na realidade um verdadeiro instrumento de punição, sua razão de ser no mundo do direito é instrumental e não punitivo. Daí seu nome: prisão cautelar.

A doutrina costuma apontar três espécies de prisão cautelar: flagrante, preventiva e temporária.

Particularmente, sigo o entendimento de Aury Lopes Jr., que entende a prisão em flagrante como prisão pré-cautelar. Isso porque o flagrante foge à lógica das cautelares. Porém, é necessário dizer que se trata de entendimento minoritário. Vou escrever sobre o flagrante em outro post.

Mas as espécies de prisões cautelares, por excelência, são: a temporária e a preventiva.

A prisão temporária é regida por lei específica (Lei nº 7.960/89) e ela: (a) tem prazo fixo determinado – 5 dias para crimes comuns e 30 para hediondos; (b) só vale para alguns crimes especificados na lei; e (c) só é aplicável na fase de investigações, ou seja, no curso do Inquérito Policial. Sua cautelaridade, portanto, se dá em função das investigações.

Por isso, a rigor, não é tecnicamente correto chamar a prisão temporária de prisão processual, pois ela não pode ser determinada durante a fase processual, mas somente na fase policial.

A prisão preventiva é bem mais ampla: (a) não tem prazo fixo determinado na lei; (b) pode ser determinada tanto na fase policial como na fase processual; (c) e tem requisitos de aplicação mais abrangentes.

Ocorre que, por conveniência de escrita ou oral, utiliza-se o termo prisão processual como sinônimo de prisão preventiva. A rigor, portanto, a prisão processual é um termo pouco técnico que designa a prisão que o sujeito cumpre no curso do processo penal.

Temos ainda o termo prisão provisória. Não é técnico, mas é utilizado como sinônimo tanto para a prisão temporária como para a preventiva (mais para esta).

O termo “provisória” se refere à característica de todas as medidas cautelares: provisoriedade. Afinal, eventualmente, cedo ou tarde, a medida instrumental há de ser substituída pela derradeira, a ser definida na sentença. O termo também soa bem no dia a dia por servir de paralelismo à liberdade provisória, que se refere à possibilidade de se responder a ação penal em liberdade.

A prisão cautelar também é chamada de medida cautelar extrema. Isso porque a prisão cautelar não deixa de ser também uma medida cautelar. Porém, ela é a medida cautelar mais gravosa, mais rígida, daí essa expressão, que é tecnicamente correta e precisa.

Execução Provisória, Marco Aurélio e Lula

Evitei esse assunto por aqui porque julguei já haver muitos textos suficientemente competentes por aí. Achei que o meu acrescentaria pouco ou nada.

Mas eu percebi que a informação hoje em dia não funciona mais dessa forma estanque. Ela só alcança os interlocutores se compartilhada de várias formas e caminhos possíveis e talvez o argumento seja convincente ou não a depender da forma como ele é apresentado. No mesmo sentido, manter-se em determinada posição, e tornar-se hábil a apresentá-la a terceiro depende da sensação de saber que há um suporte por perto, ou, dito de outro modo, de que você não está sozinho.

É muito fácil ser a favor da prisão após condenação em segunda instância. E eu concordo que o argumento jurídico é aparentemente mais fraco que o político. Se há uma lição que podemos tirar dos últimos anos é que, quando a política quer, ela transforma o direito em seu refém. O direito vai se curvar e se adaptar às exigências da política, e nós juristas estamos com essa missão de compreender o novo sentido de direito. E, se a política cada vez mais depende da chancela do Judiciário, chegará o momento em que a toga não será mais capaz de esconder seu viés ideológico.

Não à toa, o novo presidente do supremo disse que é hora de a política voltar a tomar o protagonismo, o que só comprova a percepção geral de que o jogador principal estava sendo mesmo o judiciário. Mas não se deixe enganar pela eloquência de um togado. Até o cinismo se mostrar ridículo, os juristas continuarão hipócritas, e tentarão manter a roupagem jurídica onde há somente interesse político.

A questão difícil é, portanto, esta: como argumentar juridicamente, sem ser hipócrita, assumindo o que há de político no direito, e ao mesmo tempo ser mais convincente que o argumento politiqueiro?

Afinal, não dá pra exigir de cidadãos comuns a formação básica em histórica, hermenêutica e de ciência política necessária para compreensão do real valor de cada direito fundamental.

Bom, fiz essa longa divagação inicial porque, pra mim, foi justamente a questão da prisão em segunda instância que escancarou de vez essa transformação do agir político pelo direito. Vou explicar por quê.

A lei prevê apenas 4 maneiras de uma pessoa poder ser presa no Brasil.

  1. Flagrante
  2. Mandado judicial
  3. Prisão pena
  4. Prisão cautelar

A prisão em flagrante ocorre quando alguém é (veja só…) flagrado cometendo um crime.¹ É tecnicamente uma prisão pré-cautelar, de natureza precária, e em regra é determinada por um policial (que é do poder executivo). Pode durar no máximo 24 horas, devendo ser analisada por um juiz, para então ser convalidada ou relaxada. Essa análise deve acontecer na Audiência de Custódia.

O mandado judicial é uma ordem de prisão emitida por um juiz. Ele serve pra autorizar os policiais a efetuar uma prisão quando, por exemplo, o sujeito não está em situação de flagrância.

A prisão cautelar ocorre no curso da investigação policial ou do processo e tem natureza de cautela, ou instrumental. Prisão cautelar é gênero e suas espécies são a prisão temporária e a preventiva. Elas precisam de fundamentação específica do juiz, pois nosso sistema impõe, pela presunção de inocência, a liberdade como regra e a prisão cautelar como exceção (pelo menos na teoria).

Por fim, temos a prisão pena (ou prisão penal). Ela se refere à pena do condenado na sentença penal. Talvez seja a mais intuitiva e de fácil compreensão. A grande discussão é justamente essa: quando deve começar a prisão pena?

Aliás, de onde eu tirei tudo isso? Bom, do artigo 283 do Código de Processo Penal. Olha só:

Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

O artigo 283 é de 2011, e ele tenta se adequar à lógica imposta pela Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso LVII:

ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

É daí que tiramos o famoso princípio da presunção de inocência, ou presunção de não culpabilidade. Ao unirmos o dispositivo constitucional com o legal temos não só o princípio, mas uma regra, que determina o momento em que um sujeito, pela lei, passa a ser declarado culpado.

O texto é bastante preciso. O constituinte escolheu o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para a declaração de culpa. O legislador ordinário respeitou essa opção. Uma maioria ocasional do Supremo não.

Ocorre é que sempre se entendeu “trânsito em julgado” como o momento processual no qual não cabe mais recursos. O supremo passou a dizer que o trânsito em julgado ocorre com a confirmação da condenação em segunda instância, o que só foi possível com a  torção e distorção do texto normativo.

Ora, quisesse o legislador ou o constituinte que a culpa – e, logo, a prisão pena – se desse com a condenação em segunda instância, teria dito exatamente isso!

A verdade é que o Supremo inventou uma 5ª modalidade prisão, dando a ela o nome de execução provisória.

E não existe isso de “provisória”. O termo é um empréstimo perverso do direito civil, em que a execução provisória está condicionada a uma série de requisitos, como a caução. É possível a execução provisória no direito civil porque, caso um tribunal superior reforme a decisão original, o valor pode ser restituído com atualização. E no direito penal, me diga, isso é possível?

Por isso, o termo tecnicamente preciso é execução antecipada.

Pois é, o devedor tem mais garantias que o acusado.

Há muitos argumentos em defesa da execução provisória. Uns bons e outros ruins. Não vou enfrentar todos neste post, mas apenas um, que vejo muito na boca de leigos. Ok, o Supremo foi ativista, mas não acharam ruim quando o Supremo fez o mesmo na equiparação da união estável homo afetiva.

Até pode ser considerado como ativismo a decisão da união homo afetiva, mas ali não houve redução ou mitigação de direitos fundamentais. Ao contrário, seu alcance foi ampliado, garantindo a isonomia entre grupos que estavam sendo tratados desigualmente.

Quem faz essa comparação ignora muito da história da hermenêutica, fazendo uma oposição ingênua de legalismo com ativismo. Não se espera que a corte suprema seja legalista, mas defensora última dos direitos e garantias constitucionais, ampliando-os quando necessário na medida do possível, mas nunca os mitigando. A corte está ali justamente para impedir a redução de direitos fundamentais quando o legislador tenta.

 O ponto nevrálgico é esse. Você pode até concordar com o Supremo nessa, que restringiu a amplitude de um direito fundamental que você considera um erro ou um exagero do constituinte. O problema que se ignora é o papel do STF em sentido amplo, que deve ter como baliza mínima a Constituição. Se a corte rompe com essa barreira da qual ela deve partir, é ela que passa a decidir os alcances e limites dos direitos fundamentais, e aí ficamos não somente desprotegidos da Constituição, mas reféns da indicação de nomes por presidentes populistas e incompetentes.

Você quer mesmo ministros do STF que interpretam as normas como bem desejam?

Tem mais…

O Supremo usou esse caso para romper uma barreira importante da ordem constitucional democrática e utilizou da impopularidade geral da norma pra se empoderar politicamente.

O Lula foi só o espantalho de uma política punitivista inquisitorial mais ampla. Com ele na jogada, ficou bem mais fácil conseguir emplacar essa política penal. Com Lula, a defesa da Constituição, como eu fiz aqui, parece uma defesa ao Lula, e não é.

Cria-se uma dependência mútua entre o poder Judiciário e o o poder político. Acontece que, mesmo o direito sempre sendo político, ele o deve ser numa perspectiva mais ampla e profunda, e não misturada com a política tradicional, ocasional e contingente.

P.S.: Conheço todos os argumentos dos defensores da execução antecipada. Ela é uma solução péssima pra um problema real, eu sei. Mas não se resolve um problema mexendo nos direitos fundamentais. Podia-se ter mexido nos sistemas recursais, nos critérios de prisão preventiva, na diminuição efetiva de processos, no sistema de prioridades, enfim… Mas por que não escolheram outras saídas? Por dois motivos: 1) porque as demais saídas reduzem o poder discricionário dos magistrados; 2) e porque frearia a aplicação de uma política penal punitivista.

P.S.2: ah, e o Marco Aurélio? Foi corajoso e ingênuo. Embora juridicamente correto, fez política do jeito errado e ajudou a legitimar o outro lado do argumento.

¹ Pretendo falar mais precisamente do flagrante em outro post. Mas a ideia geral é essa, o flagrante depende da atualidade do fato criminoso. Por isso, ninguém pode ser preso em flagrante tempos depois do fato ter acontecido. Quando a prisão de alguém é necessária , mas essa pessoa já não está em flagrância, o delegado deve requerer o mandado de prisão ao juiz.

O que é serendipidade?

Imagine que você esteja procurando algo e acaba encontrando outra coisa. Não é aquilo que você buscava, mas é algo também relevante ou importante. Pois é, a esse encontro fortuito chamamos de serendipidade.

Isso acontece o tempo todo quando estamos buscando algo na internet. Podemos até vir a encontrar o que originalmente buscávamos, mas no caminho nos deparamos com outra que nos prende a atenção e que ficamos felizes de ter afortunadamente encontrado.

Aconteceu comigo esses dias. Buscando por algo que não me lembro, acabei encontrando uma história incrível, contada por Juliana Marques, com o título Sobre Serendipidades, no excelente Projeto Humanos. Vale a pena ouvir aqui.

 

No direito, o termo se refere ao encontro fortuito de provas. Ocorre, por exemplo, quando a investigação busca uma prova de determinado crime e acaba encontrando a prova de outro, que sequer era investigado.

Quem provavelmente trouxe a discussão da serendipidade no direito pro Brasil foi Luiz Flávio Gomes, que, a partir da doutrina estrangeira, dividiu a serendipidade em dois graus:

A de 1º grau é quando a prova fortuitamente encontrada se refere a delito que está em continência ou conexão com o delito que justificou a medida investigativa. A serendipidade de 2º grau é o encontro de provas sobre crimes não conexos e sem continência com aquele que deu início à investigação.

A doutrina entende que a serendipidade de 1º grau é lícita e a de 2º grau é ilícita. Porém, isso pode até ajudar para uma questão objetiva de prova, mas pra realidade judicial, isso é pouco mais que o começo da discussão.

O termo não é lembrado no curso de investigações genéricas, mas apenas quando há alguma diligência especial, como a interceptação telefônica ou infiltração de agentes. Isso se deve ao fato de a autorização judicial de uma diligência especial (no caso, um meio de obtenção de prova) estar vinculada ao que a fundamentou.

Assim, se o que fundamenta a medida policial (que é uma restrição de um direito fundamental) é a suspeita de que alguém específico tenha comedido determinado crime, o investigador não pode transformar essa medida em busca exploratória, devassando toda a vida íntima do sujeito em busca de outros possíveis ilícitos.

Por trás dessa questão, portanto, há a dicotomia direito penal de autor e direito penal do fato. Se o que vale é o direito penal do fato, o investigador deve buscar provas e indícios relativos ao evento criminoso que se investiga. Por outro lado, se o que vale é o direito penal de autor, a medida investigativa autoriza o policial a vasculhar a vida toda do sujeito, e o mandado judicial é, na verdade, uma chave que transforma um cidadão protegido por direitos fundamentais em um suspeito vigiado pelo Estado.

Aí você pode me perguntar: mas aí se o policial descobrir um crime que ele não estava investigando ele não vai poder fazer nada? Óbvio que ele poderá agir, principalmente em hipótese de flagrante envolvendo periculum in mora (perigo na demora da ação policial), como sequestro, por exemplo.

A questão é que as medidas policiais especiais, ou meios de obtenção de prova, como a interceptação telefônica, tem status de prova no processo penal. É o que chamamos de prova cautelar, com contraditório diferido (postergado, deixado pra depois).

Isso significa que a “prova” fortuita, encontrada por acaso pelo investigador e sem conexão com o motivo ensejador da medida, não pode ser elevada a status de prova no processo final, devendo ser limitada à condição de starter de investigação. Ou seja, não vale como prova propriamente dita, mas somente como elemento motivador de investigação, podendo ensejar novas buscas e diligências policiais.

Em síntese, a prova encontrada tem que estar vinculada ao fato que ensejou a medida policial.

Mas isso tudo aí é quase que uma ficção criada pela doutrina, que finge acreditar em direito penal do fato. A verdade é que é o juiz que vai dizer: a) o que é conexão (convenhamos, dizer que um crime tá vinculado a outro é muito fácil); b) qual o valor da prova obtida; c) se aplica ou não o entendimento doutrinário sobre a serendipidade, que não é positivado.

Aos investigadores, a solução é mais simples do que parece: havendo descoberta de novo crime, conexo ou não, é importante a comunicação ao juízo competente sobre a descoberta. Isso deve dar a guarida judicial que se busca, evitando-se a contaminação das outras provas no caso de um juiz declarar ilicitude por serendipidade de 2º grau. 

Aos advogados, creio que a discussão constitucional ou a defesa genérica de garantias fundamentais seja, cada vez mais, perda de tempo. Aprofunde o aspecto da legalidade, no nexo de causalidade entre ato judicial motivador e a prova encontrada. O encontro fortuito, por si só, não tem nada de ilícito. O que pode ensejar a nulidade é questionar se o encontro foi mesmo “fortuito” ou se após a descoberta, o policial passou a agir de ofício, sem qualquer comunicação à autoridade judicial.

Por esses motivos, procure saber se o investigador não estava fazendo busca exploratória com a medida policial, e se após a descoberta ele comunicou o juízo ou se procedeu de ofício na busca de novos indícios a partir da descoberta.

Bom, a princípio, a reflexão sobre serendipidade é essa. Dessa vez vou deixar um pedido: Se chegou até aqui fortuitamente buscando outra coisa, deixa um sinal pra mim! Até mais.

Da competência para Habeas Corpus preventivo

Embora o Habeas Corpus preventivo seja raramente admitido perante os tribunais, sua existência é muito importante e plenamente compatível com a legislação vigente, que prevê o remédio constitucional não só para coações ilegais atuais como também para as iminentes.

Como leciona Aury Lopes Jr., o HC preventivo existe no direito pátrio desde 1871, e ele se refere não à certeza de um ato ilegal, mas a um grau razoável de verossimilhança e probabilidade, até mesmo porque é inexigível a qualquer pessoa qualquer certeza sobre fatos futuros.

No HC preventivo, portanto, o paciente busca uma proteção judicial a uma possível e provável ação ilegal das autoridades, o que é chamado de salvo-conduto. Assim, o juiz ordena às possíveis autoridades coatoras que não procedam com a ação ilegal iminente.

Mas a quem compete a emissão desse mandamento judicial de salvo-conduto?

Isso vai depender de quem são as possíveis autoridades coatoras, devendo o habeas corpus – ainda que o preventivo – ser direcionado à autoridade judicial imediatamente superior a elas.

Quando a provável autoridade coatora for policial civil ou militar, temos a primeira instância da justiça comum estadual (ou do DF) como competente, mas o HC preventivo pode ser impetrado pra qualquer juízo?

Ainda que o endereçamento equivocado do HC não seja motivo para seu indeferimento (com base no art. 649 do CPP), é sempre conveniente apontar a competência correta para a impetração do HC preventivo.

Se não há qualquer ato ilegal ou fato típico na conduta que pode dar ensejo à ação ilegal da autoridade, o HC preventivo deve ser impetrado à autoridade judicial que provavelmente será dirigida o caso na hipótese de ocorrência da coação ilegal esperada.

Por outro lado, havendo ato ilegal ou fato típico na conduta que pode vir a ensejar coação ilegal, o HC preventivo deve ser impetrado perante a autoridade judicial que deveria julgar a conduta. Dessa forma, havendo fato típico na conduta, o salvo-conduto deverá ser emitido por autoridade judicial competente para julgar o fato, e não o juízo ao qual provavelmente – por erro que se busca evitar – será dirigido a coação ilegal.

Exemplificando: Se uma pessoa cultiva a planta cannabis, com objetivo de preparação de produto em pequena quantidade e para consumo pessoal com finalidade medicinal, temos a conduta típica prevista no art. 28 § 1º da Lei de Drogas, de competência do Juizado Especial Criminal (JECrim).

Se a pessoa possui somente o dolo de consumo pessoal, sem qualquer intenção de comercialização ou de entrega a terceiro, não há razão que justifique qualquer ação da vara criminal ou especializada de entorpecentes. 

Assim, o HC preventivo, que busca evitar a prisão ilegal e equivocada por tráfico de drogas, deve ser dirigida ao juízo que deveria julgar a conduta devidamente apreciada, ou seja, consumo de drogas.

O salvo-conduto, nessa hipótese, não deve ser emitido pela vara de entorpecentes, mas sim pelo juizado, que deve impor as condições e limites da condição de usuário no caso concreto.

Nessa hipótese, embora seja discutível a existência do crime, seja por inexigibilidade de conduta diversa ou por estado de necessidade, há fato típico envolvido, o que necessariamente invoca a jurisdição do JECrim.

A Grande Mentira de Bolsonaro

Augusto Heleno, General do Exército reformado, é o que responde pela política de segurança pública do candidato Bolsonaro, representando-o muito bem por sinal, pois igualmente mostra conhecimento superficial e simplista da segurança pública.

Com semblante de desprezo, o general diz que a condição de insegurança pública vivida no Brasil hoje é “fruto de uma política de direitos humanos conduzida de uma maneira equivocada”. Isso mesmo, ele disse que a causa da alta criminalidade é dos direitos humanos…

Ambos apelam para o senso comum raso a respeito dos direitos humanos, e se embasam em uma crença, um imaginário sem lastro na realidade, de que bandido tem muitos direitos e que são vistos como vítimas da sociedade.

A legislação penal brasileira, inspirada na lei da autoritária Itália Fascista de Mussolini, é branda demais pra eles.

I – Ninguém diz que bandido é vítima da sociedade

Essa ideia de que parte da população e a academia acham que o bandido é vítima da sociedade é falsa. Talvez isso decorra de uma falha da academia em conseguir comunicar de forma eficiente e acessível o que seria de fato uma política de direitos humanos e como se dão os estudos criminológicos.

Há um texto bom sobre isso. É de Ramon Kayo e seu título é excelente: “Ninguém é a favor de bandidos, é você que não entendeu nada”.

É uma obviedade, nos estudos criminológicos, que os crimes variam de região para região, de cultura para cultura, de cidade para cidade, bairro pra bairro. As causas da ação criminosa são múltiplas e é simplesmente impossível precisá-las de forma definitiva. No mesmo sentido, é impossível pensar em soluções fáceis ou rápidas pra o problema do crime.

Ninguém – simplesmente ninguém – considera que o criminoso deixa de fazer uma escolha, ou de que ele comete o crime de forma totalmente determinada pela sociedade. No mesmo sentido, é também um reducionismo enorme dizer que não há condicionantes sociais nessa escolha.

Não é difícil perceber que dizer isso não é o mesmo que dizer que o sujeito criminoso é uma vítima da sociedade. Estamos apenas tentando compreender a dinâmica do crime, para então propor soluções compatíveis com a complexa realidade social.

II – Direitos Humanos é para mim e para você, mas também pra quem comete crime

Quando você defende que direitos humanos só devem ser aplicados para humanos direitos, seja lá o que isso significa, você está autorizando o Estado a decidir quem merece e quem não merece ser amparado pelas leis.

Dizer que certas pessoas não merecem o amparo dos direitos humanos é o mesmo que abrir mão deles para si mesmo. Isso porque a história já nos mostrou que a suspensão dos direitos de certas pessoas depende tão somente do poder político. E fato é que nunca podemos contar com a boa intenção dos nossos governantes sobre nós. Hoje pode ser que o governante não queira mexer com você, mas e amanhã?

Direitos humanos, portanto, devem ser estendidos a todas as pessoas, indistintamente, sem diferenciação de qualquer natureza, inclusive a quem praticou um crime. Do contrário, havendo qualquer espécie de distinção, ninguém está protegido do arbítrio e da violência. Ou vale pra todos ou não vale pra ninguém.

Quando se fala em direitos humanos, estamos falando, grosso modo, de legalidade. Isso significa que o agir do Estado e de seus agentes deve estar sempre condicionado a parâmetros pré-estabelecidos por lei. Ou seja, ninguém pode ser punido pelo Estado sem o caminho pré-definido pela lei. E o agente do Estado deve estar sujeito à lei, não podendo usar da autoridade do Estado em favor do arbítrio e da violência.

III – A grande mentira

A grande mentira de Bolsonaro tem este pano de fundo, uma manipulação discursiva acerca dos direitos humanos. Mas o ponto principal é a ideia de que os direitos humanos se voltam contra o policial, que atua desprotegido pela lei e sofre punições injustas por fazer o seu trabalho.

Isso é uma grande mentira. Por quê?

Ao contrário do que o presidenciável afirma, há sim retaguarda jurídica para os policiais. Duas de ordem formal e duas de ordem informal.

Do ponto de vista formal, há excludentes de ilicitude que protegem devidamente os policiais, a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal, presentes no código penal, nos artigos 23 e 25. A tal retaguarda jurídica já existe, portanto. E é essa daí.

O Heleno fala que o problema é a interpretação que se dá a esses dispositivos legais. E ele está mentindo pra você.

O que ele não mostra são os dados. A letalidade policial no Brasil é altíssima. Temos das polícias que mais matam no mundo. Fato é também que temos muitos policiais mortos em serviço e fora dele, mas não temos policiais sendo punidos por homicídios.

Outra retaguarda jurídica de natureza formal são os autos de resistência. Eles são um filtro que a própria polícia civil e o Ministério Público fazem. Acreditando haver indício de legítima defesa ou qualquer outro motivo, não há processamento da morte em confronto com a Polícia.

Quem trabalha com o Sistema de Justiça Criminal sabe muito bem como MP e a PM são bem relacionados. A denúncia de um policial por homicídio doloso não vem sem um preço alto a essa boa relação. Promotor não compra briga com a polícia à toa. Isso é o que eu chamo de retaguarda jurídica informal, a leniência que o Ministério Público tem com a violência policial.

Pra provar meu ponto, vou trazer um dado.

No RJ, em 2005, tivemos 355 inquéritos de autos de resistência instaurados. De tudo isso, apenas 3 viraram ação penal e apenas em um caso houve condenação[1].

Mesmo antigo, é esse o padrão. E a letalidade policial, assim como o crime, varia de polícia para polícia, região pra região etc. No RJ, BA e SP, há elevado índice de letalidade policial. No DF, como bom exemplo, quase não há casos de mortes em confronto com polícia. Quanto mais técnica é a polícia, menos autos de resistência temos.

Os estudos indicam que há uma narrativa padrão nos autos de resistência. Não há apuração de fato, mas um protocolo que escuda a ação policial indevida, misturando a ação violenta e criminosa com a legítima defesa de verdade. 

De tão mal feitos que são, sequer há uma possibilidade real de a academia analisar o acerto ou erro dos autos de resistência.

A segunda retaguarda jurídica informal que existe de proteção ao policial é justamente o apoio da população. Não tenho dúvida que os casos mais comuns de absolvição em tribunais do júri são justamente de policiais.

Ou seja, policiais quase nunca são indiciados, sendo protegidos pelos autos de resistência. Quando são indiciados, não são denunciados pelo promotor, pois não quer comprometer sua reputação perante suas principais testemunhas nos processos criminais. Duvido seriamente que um promotor, mesmo contra a tendência, venha a denunciar um policial que matou em legítima defesa. Havendo legítima defesa, o juiz o absolverá sumariamente. Na raríssima hipótese de ir a júri, certo será sua absolvição ainda que haja excesso na ação policial.

Duvida que há esse apoio da população? Então veja o caso da Cabo PM que matou o assaltante em frente à escola. Ela recebeu honrarias e virou heroína nacional, saindo como aspirante na política. Há alguma chance de ela vir a ser denunciada por um promotor? Alguma chance de ela ser condenada em um tribunal do júri?

Para aqueles que babam sangue, tenho que fazer a ressalva: Em minha opinião de jurista, houve sim legítima defesa da cabo. Mas já comemorar – qualquer morte que seja – eu deixo com os fascistas, ok?

E tem mais. Ao contrário da lógica aplicada a criminosos comuns, de responderem os processos presos, policiais quase sempre respondem em liberdade.

Policiais condenados por homicídio são sempre em execuções indiscutíveis. Se mesmo assim você é contra sua punição, aí já nem sei por que perdeu tempo lendo este texto. Você claramente despreza nosso sistema jurídico vigente.

IV – Militarizar a segurança pública é militarizar o crime

Militares das Forças Armadas sentem falta de uma “retaguarda jurídica” pelo simples fato de a ação militar em guerra ser diferente de uma ação policial. A lógica é diferente. O inimigo no campo de batalha deve ser aniquilado, não preso e julgado.

O que querem trazer é a lógica da guerra para o espaço urbano. A carta branca para matar, como se do outro lado só existissem soldados igualmente armados, é o caminho para um estado de guerra civil.

Esquecem que no ambiente urbano há gente de todo tipo, todos cidadãos. Se criminosos, merecem o rigor da lei, que não inclui execução sumária, mas um julgamento e uma pena. Se inocentes, jamais o terror da guerra e a submissão ao arbítrio de um policial que tem carta branca pra matar sem medo de punição.

Outra questão, portanto, é a real eficácia dessa política de guerra como combate à criminalidade. Quero entrar nisso em outro post, mas adianto aqui. Ela simplesmente não funciona. A criminalidade com essa política de extermínio pode até diminuir por um breve período de tempo, mas a tendência a médio e longo prazo é a militarização do crime. Os homicídios, inclusive de policiais, tendem a aumentar.

Policiais precisam de segurança para trabalhar, mas nenhum funcionário público pode ter imunidade. O caminho é justamente o de valorizar a técnica policial e a previsão legal dos procedimentos a serem adotados. Nossa lei de fato é pouco clara no como o policial deve agir, mas a solução não é o da imunidade, mas o da previsão e o da precisão legal. O caminho para a proteção do policial é justamente o da lei, o da legalidade.

Não acredite em solução fácil, muito menos violenta, para os problemas sociais.

Não acredite nessa grande mentira de Bolsonaro.

[1] Letalidade policial e indiferença legal: A apuração judiciária dos ‘autos de resistência’ no Rio de Janeiro (2001-2011), de Michel Misse (Professor da UFRJ), Carolina Christoph Grillo (Pesquisadora de pós-doutorado do CPDOC/FGV-RJ) e Natasha Elbas Neri (Mestre pelo PPGSA da UFRJ).

Lei de proteção aos dados pessoais saindo do forno… e crua

De acordo com a notícia da jornalista Ana Pompeu (pelo Conjur, aqui), nesta terça-feira 14.08.18, Temer sancionou, com vetos, a tão esperada lei de proteção aos dados pessoais. Será a Lei nº 13.709/2018, com vigência para daqui 18 meses.

A proteção de dados pessoais já é discussão legislativa na Europa há mais de 20 anos. Lá a matéria é frequentemente lembrada e rediscutida, sempre levando-se em consideração as novas questões que emergem com o avanço tecnológico.

Ao mesmo tempo, enquanto a academia internacional já discute a proteção de dados pessoais lá no quinto andar, aqui estamos só olhando para a porta de entrada.

Pois bem, o parlamento brasileiro poderia pegar carona nessa discussão avançada da Europa, mas resolveram começar engatinhando mesmo.

Sejamos sinceros, a nova lei de proteção aos dados é um grande nada.

Lei pra inglês ver no melhor sentido do termo. Não avança nos pontos críticos e repete o jabá que não vai incomodar ninguém nem vincular os atores que realmente importam. Não dispõe sobre sanções e, quando indicou um órgão regulador, foi vetada pela presidência.

Segundo Ana Pompeu, a lei previa a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia que seria vinculada ao Ministério da Justiça. O novo órgão teria atribuição de, por exemplo, elaborar diretrizes para uma Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e Privacidade, fiscalizar e a aplicar sanções em caso uso de dados fora da legislação.

A ideia de criação de uma autarquia é interessante, embora eu acredite que, constitucionalmente, essa atribuição caiba ao Ministério Público (mesmo não acreditando muito no MP para fiscalizar o Estado em práticas autoritárias).

Quem sabe o veto não reabra essa discussão. A meu ver, as sanções e, claro, os deveres, devem estar especificados por lei, não por portaria de autarquia vinculada ao Executivo…

O essencial, e que faltou na lei, é a determinação de que todos os processos de tratamento de dados sejam abertos e sujeitos a controle posterior, se não do público em geral, no mínimo, da comunidade acadêmica e das instâncias reguladoras e do MP, com direito de participação de quem os dados se referem.

Pertinente seria a determinação de procedimentos mínimos especificados sobre transparência nos processos de tratamento de dados e prestação de contas a uma instância apenas, externa àquela que requereu e tratou os dados, que teria a competência para apurar infrações e provocar o Judiciário para aplicação de penalidades previamente estabelecidas.

Em outras palavras, a lei de proteção aos dados pessoais deveria estabelecer regras mínimas para qualquer tratamento de dados e estabelecer deveres claros e precisos de prestação de contas. Não foi o que aconteceu.

A lei trabalha sobre generalidades e abstrações. Veja só: O tratamento de dados pessoais ou a sua interconexão respeitará a lealdade e boa fé, de modo a atender aos legítimos interesses dos seus titulares…

Boa fé e lealdade!… até são valores que podiam ter certa força normativa lá na Idade Média, mas hoje não significam absolutamente nada. O que vincula não é uma regra genérica pedindo boa intenção. E o pior é que eles sabem muito bem disso.

Mas o pior da lei nem é isso. É a previsão de que ela não vale – isso mesmo, simplesmente não se aplica – aos bancos de dados utilizados pela administração pública, investigação criminal ou inteligência. Ora, aprendi que em uma democracia a Lei cria, vincula e limita o Estado. Porém, com a população desatenta, o Estado pode simplesmente querer regular os demais e se desvincular de qualquer obrigação!

Temo, acho que com razão, que a lei – aberta e genérica como está – vá servir mais para o Estado controlar e censurar a sociedade do que para a sociedade controlar o Estado.

Bom, mas o Estado pode tudo. São outros tempos mesmo…

 

Sobre o segredo das prisões e o deleite autoritário

Em julho do ano passado escrevi um texto sobre o direito que temos de filmar uma ação policial (aqui 1). Alguns meses depois, os delegados Henrique Hoffmann e Eduardo Fontes escreveram também sobre o tema ao Conjur, com conclusões bem próximas às minhas (aqui 2).

Devo confessar, contudo, que já não gosto tanto daquele texto. É tão distante da realidade que chega perto da condição de mentira, da desinformação, muito embora eu acredite não ter falhado no rigor “técnico-jurídico”.

No ano passado, circulou um áudio de whatsapp em que um policial ensina os melhores argumentos possíveis para justificar a apreensão de celulares. Sem esconder o cinismo, o policial diz que a apreensão do celular é justificada pelo Código de Processo Penal, pois é elemento de prova. Como o argumento é capaz de convencer os desavisados, devo dizer o óbvio: a grande maioria das filmagens de ação policial não é de fato-crime, mas tão somente das abordagens, da atuação policial. Ou seja, não há nas imagens prova de coisa nenhuma.

O que existe, na verdade, é um verdadeiro ranço inquisitório e autoritário de tempos em que o segredo das prisões e o arbítrio das autoridades eram (?) a regra. Há, na verdade, repulsa pelo Estado de Direito, pelo caráter democrático da publicidade e da legalidade (reserva legal ou necessidade de vinculação à lei).

O repórter Leandro Machado, da BBC, foi preso (sim, preso!) por ter filmado uma ação policial em São Paulo, história que ele conta na excelente matéria aqui 3.

Claramente incomodados com as filmagens, os policiais começam com a ladainha. Aproveitando-se da ignorância alheia e de uma legislação frouxa para abusos, tentam justificar a apreensão do aparelho dizendo que gostariam de verificar se não era produto roubado (?!).

Obrigam o desbloqueio do celular com ameaças ao repórter: de prendê-lo por desobediência! – carta trunfo do bom e velho fascismo policial.

Contrariando as orientações, levam o celular para viatura, longe dos olhos de seu dono. O bom policial sabe que as buscas devem ser realizadas na frente do cidadão, seja para sua própria proteção como para a higidez da diligência.

Partem, em seguida, para o conselho do policial do whatsapp. De suspeito de ser ladrão, o repórter vira testemunha, sendo então “levado” para a delegacia.

Pelo seu texto, o repórter parece não saber que foi preso. Ele foi, de fato, preso ilegalmente. Em síntese, são seis as hipóteses em que uma pessoa pode ser “conduzida” ou “detida”: quatro estão no art. 283 do CPP, uma está no art. 218 do CPP, e a última foi uma invenção do STF (prisão em 2ª instância). Nenhuma das hipóteses é a do caso.

Sim. Preso por filmar. Não fosse um repórter, jamais saberíamos.

Em minha opinião de jurista (digo não por arrogância, mas para me proteger, na torcida de ainda estar vigorando a liberdade de expressão), houve crime de abuso de autoridade – art. 4º, a, da Lei nº 4.898/65.

Todo meu repúdio à delegada do caso, que não só ratificou os abusos como ainda ameaçou prender o repórter por falso testemunho (?!). Agora tem prisão por falso testemunho de ação policial? Que crime é esse, senhora?

Quanto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de SP, não esperava outra coisa: não viram nada de errado na atuação policial. Como veriam se é a própria orientação da instituição? Não conseguem lidar com a ideia de vídeos da polícia trafegando por aí na web manchando o nome dessa instituição que nada tem a temer.

Para “limpar” toda a ação, basta usar as cartas trunfos: desacato, desobediência, falso testemunho etc.

Já não consigo mais falar de lei, artigos e direitos sem me sentir um mentiroso. Sinto que não posso mais fazer meu exercício técnico sem a ressalva: Mas isso não vale nada, ok? No fundo, o que vale é a vontade de quem tem o poder.

Ranço inquisitório muito bem criticado pelo Ferrajoli, que aponta a involução histórica na tutela penal (Direito e Razão, cap. VIII, 33.2). Chegamos a crer que superamos os crimes de lesa majestade, contra o rei ou a ordem de nobreza das sociedades absolutistas. Mas não. Retrocedemos no tempo, involuímos e voltamos a tutelar o Estado, as autoridades, suas vontades e seus arbítrios. Razão de Estado e não de Direito que vale.

Atenção cidadãos, dizem eles: A Lei já não lhes serve mais como escudo contra os abusos do Estado e de seus representantes. Ao contrário, a Lei nos serve e deve nos proteger dos seus direitos.

Lá no Rio de Janeiro, por sua vez, um promotor acha que pode se beneficiar do sigilo das prisões e mandar um interno para a solitária com uma simples ordem oral. Acha que, sendo promotor, pode passar também por carcereiro (como bem pontuou o Lenio aqui 4). (Merece elogio o juiz Rafael Estrela, que acertou na decisão).

Deve ser a cultura do concurso. Só pode. Acham que, por terem vencido a barreira do concurso, zeraram a vida e, logo, os limites legais. Esquecem que a Lei existe também para limitar seu poder de atuação, não só legitimá-lo.

Não contava o promotor que o interno abusado (nos dois sentidos) era Sérgio Cabral e não um pé-rapado qualquer. Aí a notícia espalhou…

Não fosse esse detalhe, jamais saberíamos.

Certa vez, anos atrás, quando visitava uma penitenciária pelo estágio, perguntei se eu podia tirar algumas fotografias lá dentro. Não podia. Por quê? Questionei.

Não houve nem a hipocrisia da carta trunfo “por razões de segurança”. A razão é mais simples e bem explícita. Não querem mostrar o interior do presídio. O sigilo protege a “Administração”.

Sobre o segredo das prisões, lá no século XVIII, já dizia William Blackstone:

Privar um homem da existência ou confiscar-lhe violentamente a fortuna, sem acusação, nem julgamento, seria imprimir ao despotismo proporções tão monstruosas que dariam imediatamente ao país inteiro o rebate da tirania. Mas entregar um indivíduo ao segredo das prisões, onde os seus sofrimentos se ignoram, ou esquecem, é uma invenção da força arbitrária menos comovente, menos desafiadora e, por conseguinte, mais perigosa.

O segrego, o sigilo, o secreto, serve ao senhor do autoritarismo. O fascista sem isso é uma besta amansada.

Imaginem o que pode acontecer quando o interior dos presídios for des-coberto. Imaginem o que não faria uma defensoria atenta em cada delegacia. Imaginem nós, cidadãos comuns, sem nenhum risco de ser preso ou de ter o celular apreendido após uma simples filmagem.

Não sei se basta para matar a fera, mas daria uma boa amansada.

Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, de Luigi Ferrajoli. RESUMO!!!

Este semestre ministrei a disciplina eletiva “TEORIA DO GARANTISMO PENAL”, na qual estudamos a obra Direito e Razão, do Luigi Ferrajoli.

A turma, então, fez um resumo de toda a obra, que disponibilizo para vocês aqui no blog.

Fiquei muito contente com o resultado e acho que realmente pode ser útil para a compreensão da obra.

Esta é a primeira versão. Ainda pretendo incluir uma apresentação.

>>>>>>>>>>>DIREITO E RAZÃO – RESUMO<<<<<<<<<<<<

Processo Penal de Vingança: uma correlação entre Carnelutti e Black Mirror

O texto abaixo é uma resenha do meu aluno de direito na UFLA, Gabriel Felipe Nami Inácio, quem gentilmente me autorizou a publicá-lo no blog.

Contém spoilers!

Processo Penal de Vingança: uma correlação entre As misérias do Processo Penal, de Francesco Carnelutti, e o episódio White Bear, da série Black Mirror.

O fim último do processo penal consiste em assegurar os direitos individuais do acusado, ao menos em uma dimensão teórica, de modo que se possa obter um devido processo penal justo e efetivo. É por meio desse ramo jurídico também que se verifica o grau de democracia de um Estado, a partir de um exame da valoração imputada à liberdade humana. Nesse sentido, o sistema acusatório é estruturado a partir de uma distinção clara entre quem julga e quem acusa, de forma que o exercício de uma atividade própria das partes pelo magistrado é incompatível com os valores desse sistema.

Com efeito, Carnelutti discorre em sua obra, “As misérias do processo penal”, sobre a posição dos magistrados, promotores, advogados e réus. O autor salienta que as decisões judiciais podem sofrer influência da mídia, sobretudo em casos de grande repercussão social, corroborando para um processo penal que suprime direitos e garantias individuais do réu em prol de apelos sociais controlados pela mídia. O jurista italiano ainda analisa a situação a qual o réu fica sujeito, dispondo sobre a exposição de um acusado e o consequente estigma social que lhe é imputado, ainda no decorrer do processo. De fato, o processo é por si só uma pena, conforme afirma Carnelutti, que produz efeitos prejudiciais não apenas na vida do indivíduo acusado, mas também na de seus familiares e pessoas de seu convívio social.

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É possível elucidar ainda a tese proposta pelo autor a partir de um escrutínio do episódio “White Bear”, da série Black Mirror.

O episódio se inicia com a protagonista, que não se lembra da própria identidade, sendo perseguida por pessoas fantasiadas, além de filmada por outras que não prestam qualquer auxílio. Após tentativas de assassinato contra a protagonista, a perseguição é concluída quando ela chega a uma sala de máquinas que se transforma em um palco. Nesse ínterim, a personagem se recorda de quem é: Victoria Skillane, condenada pelos crimes de sequestro e assassinato de uma criança. A partir disso, são exibidos vídeos da criança como refém, gravados pela própria protagonista, a qual suplica pela misericórdia da platéia e dos apresentadores. White Bear, nome dado em homenagem ao urso de pelúcia da criança assassinada, é sobre um campo de diversões punitivo, em que criminosos são condenados a participar desses espetáculos perversos. Nesse diapasão, observa-se que a dinâmica e crítica do episódio convergem para o sistema punitivo fundamentado no sentimento de vingança, que, em uma dimensão diacrônica, desvia o processo penal de sua finalidade, sobretudo quando o juiz é persuadido e tem liberdade processual para além das características inerentes à atividade de julgar. Além disso, verifica-se que o próprio processo penal em si já é uma tortura contra o acusado, conforme enfatiza Carnelutti, haja vista a rotulação do acusado e a reverberação social de um processo penal.

A partir disso, é notório que o juiz deve assumir uma postura imparcial, de modo que o devido processo penal e os direitos individuais do réu não sejam frustrados, seja em decorrência do sentimento de vingança dos familiares da vítima, de pressões exercidas pela mídia ou até mesmo das próprias fragilidades do magistrado. Por imparcialidade, entende-se que o juiz deve se manter afastado da atividade de investigar, ocupando-se exclusivamente com a atividade de julgar. Insta salientar ainda que não se sustenta a percepção de um juiz como mero reprodutor da lei, uma vez que se reconhece o mito da neutralidade, consoante perspectiva do próprio Carnelutti (1995, p. 47):

A justiça humana não pode ser senão uma justiça parcial; a sua humanidade não pode senão resolver-se na sua parcialidade. Tudo aquilo que se pode fazer é buscar diminuir esta parcialidade. O problema do direito e o problema do juiz é uma coisa só. Como pode fazer o juiz ser melhor daquilo que é? A única via que lhe é aberta a tal fim é aquela de sentir a sua miséria: precisa sentirem-se pequenos para serem grandes.

À luz da crítica elaborada, é evidente que desvios de finalidade do processo penal refletem proporcionalmente uma sociedade menos democrática. A insigne operação lava-jato apresenta diversos episódios nos quais o juiz Sérgio Moro agiu de forma questionável, demonstrando não somente incongruência com as funções de seu ofício, mas inconsistência de sua atuação. Como exemplo, reputa-se a divulgação de uma conversa entre os ex-presidentes, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, divulgado de maneira irregular. O juiz, em entrevista, afirmou que a divulgação dos áudios era matéria de interesse público.

Portanto, é notório que o processo penal como instrumento de garantia de direitos individuais alcança não tão somente o acusado, mas todo e qualquer cidadão. Dessa forma, urge a necessidade de preservação das liberdades individuais, que norteiam todo o processo penal, de maneira que este não se submeta a sentimentos de vingança, atentando contra o próprio regime democrático.

Qual a diferença entre legalidade e legalidade estrita?

Legalidade no direito penal, também chamada de ‘mera legalidade’ ou ‘legalidade lato sensu‘ não se confunde com a legalidade estrita, ou ‘legalidade stricto sensu‘ ou ‘taxatividade’.

Certo é que o princípio da taxatividade decorre do princípio da legalidade, mas vamos compreender suas diferentes dimensões.

O princípio da legalidade surge como fórmula jurídica nas revoluções burguesas “na direção da positividade jurídica e da publicização do direito penal”¹, em clara superação à lógica absolutista. Em poucas palavras, é o princípio da legalidade que exige que a aplicação da pena, bem como a própria previsão de condutas incrimináveis, esteja condicionada tão somente à lei, e não à vontade do poder instituído. Além de garantir a previsibilidade do exercício do poder punitivo do Estado, o princípio da legalidade garante o sentimento segurança jurídica. Ela está prevista na norma penal no art. 1º do nosso Código Penal.

Desse princípio, que condiciona o poder punitivo à lei, decorre outros corolários, ou seja, meras derivações, que acabam nos ajudando a compreender suas variadas funções.

nullum crimen nulla poena sine lege praevia Aqui se tem o postulado da irretroatividade da lei penal. Ele significa que a lei penal não pode retroagir para atingir o agente que praticou a conduta que foi incriminada após sua prática.

nullum crimen nulla poena sine lege scripta – Não há crime nem pena sem lei escrita. Isso quer dizer que normas incrimináveis devem ser escritas e promulgadas de acordo com o devido processo legislativo, além de impedir que outra espécie de norma, principalmente moral, possa ser utilizada para punir alguém.

nullum crimen nulla poena sine lege stricta – Este postulado proíbe incriminações por analogia e também a indeterminação dos modelos de pena. Além de obrigar o legislador a definir com precisão as consequências da incriminação, o postulado limita o poder judicial na aplicação e na dosimetria da pena.

nullum crimen nulla poena sine lege certaAqui sim se fala em legalidade estrita ou taxatividade. Talvez seja o postulado mais importante, pois sem sua aplicação, há verdadeiro esvaziamento da normatividade do princípio da legalidade. Ou seja, sem taxatividade, a legalidade em sentido amplo pode ser facilmente driblada e perder força. Vamos a ela.

Pelo princípio da taxatividade, há vedação de incriminações com termos vagos, abertos, indeterminados, genéricos ou ambíguos. Além da legalidade, é necessário também que haja possibilidade de previsão precisa sobre o sentido da norma penal. Se refere à expectativa de sentido que pode ser atribuída à norma. Ou seja, enquanto a mera legalidade se refere a “conformidade formal às leis dos atos de produção normativa”², a taxatividade se refere ao conteúdo e ao sentido da norma penal.

Sua função, portanto, mais do que relacionada à contenção do poder punitivo Estatal exercido pelo legislativo, condiciona o poder jurisdicional, pois limita o poder de atuação dos juízes, justamente por restringir as possibilidades interpretativas da norma e, por consequência, seu uso arbitrário.

Portanto, o princípio da taxatividade é um instrumento de contenção que vai do poder legislativo em direção ao poder judiciário. Em outras palavras, é uma forma de o poder legislativo limitar o poder dos juízes reduzindo o escopo interpretativo da norma penal. Uma lei bem escrita e mais delimitada semanticamente tem maior potencial de constrangimento sobre o julgador.

Esta é a garantia estrutural que diferencia o direito penal no Estado “de direito” do direito penal dos Estados simplesmente “legais”, nos quais o legislador é onipotente e, portanto, são válidas todas as leis vigentes, sem nenhum limite substancial à primazia da lei. E é essa diferença que hoje marca o critério de distinção entre garantismo e autoritarismo penal, entre formalismo e substancialismo jurídico, entre direito penal mínimo e direito penal máximo³.

Porém, é possível dizer que o princípio da taxatividade é mais do que isso.

A partir de uma visão garantista, o princípio da legalidade estrita não somente obriga que a norma penal seja clara e determinada, mas que ela preveja uma conduta determinável, verificável, sujeita à prova e à contraprova. Isso significa que a lei penal tem de ser formulada de modo a permitir sua comprovação fática, o que mostra a relação do princípio da taxatividade com os demais princípios norteadores do direito penal e processual penal, como o da materialidade da ação e da lesividade, ou como o ônus da prova e o direito de defesa.

¹ Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Pág. 63 e sgs.

² Ferrajoli. Direito e Razão. 28.3.

³ Ferrajoli. Direito e Razão. 28.3.

A Audiência de Custódia e o jogo de aparências

Conto a história de uma Audiência de Custódia que atuei como advogado. Espero mostrar um pouco da lógica meramente burocrática, mecânica e desumana que permeia as Audiências de Custódia. Seu propósito, embora muito positivo e de alto valor jurisdicional, simplesmente perde seu sentido quando o espaço que poderia servir de debate sobre os mais sensíveis problemas da Justiça Penal é reduzido a um jogo de cartas marcadas, viciado e dissimulado.

O sujeito havia sido preso em flagrante no caminho de casa junto ao seu filho criança de 8 anos de idade, trajeto que estava sendo feito de carro. Não havia blitz ou alguma operação genérica que se deparou por acaso da sorte com o infrator. Foi uma ação localizada e direcionada a ele.

Logo após essa primeira abordagem, o sujeito teria levado os policiais em sua residência, onde encontraram mais 2 kg de maconha na geladeira.

Estranhei essa “cooperação” e questionei sua esposa, quem me procurou, sobre o porquê de seu marido ter consentido com a entrada em domicílio. Ocorre que os policiais falaram para ele que, se não fossem convidados a entrar em sua residência para buscar mais drogas, seu filho seria levado para o Conselho Tutelar.

Pra mim, ficaram evidentes duas questões.

A primeira era de que já havia um trabalho policial prévio de investigação sobre o sujeito. Como de praxe, esse trabalho investigativo não é autuado, o que impossibilita um controle judicial sobre sua legalidade. Sabendo que o juízo não se importa com essa autonomia e discricionariedade policial nos crimes de drogas, sequer aleguei esse fato em audiência. Até mesmo porque isso pode ser interpretado não como sintoma de ilegalidade do flagrante, mas, ao contrário, pode ser lido como maior evidência do crime e da validação da prisão. A verdade é que o Judiciário, junto ao MP, não tem a intenção de judicializar os atos investigativos informais da polícia (principalmente da PM), afinal se trata de um controle social que, se for questionado juridicamente, pode ser “prejudicado”.

A segunda questão é mais sensível. Não vejo como lícito a obtenção de um consentimento baseado em coação. Fato é que os policiais, diante da presença da criança, falaram o seguinte: olha, se a gente te prende agora teu filho vai pro Conselho, e pra gente deixar ele em casa com a mãe vamos ter que fazer a vistoria na residência.

Questionei a licitude da violabilidade domiciliar, requisitando o relaxamento da prisão ou, pelo menos, no que se referia à droga encontrada em domicílio, em razão do vício de consentimento, obtido mediante coação, por estarem ausentes os requisitos de voluntariedade e espontaneidade.   

A juíza desconsiderou minha argumentação com a fundamentação de que não havia elementos nos autos capazes de sustentar a tese. Ora, claro que não havia, e jamais haverá. Me parece simplesmente absurda a ideia de que os abusos policiais serão autuado por eles próprios.

 Para a juíza, parece mais sensata a história de que os policiais foram cordialmente convidados a entrar na residência e apreender a droga. “Vamo lá em casa, seus polícia, que tem mais droga lá. Vai ser um prazer recebê-los”.

Puro cinismo judicial. Negam o direito e seu valor. Desafiam a inteligência média.

Primário, sem nenhuma passagem pelo sistema, aleguei a probabilidade de enquadramento no tráfico privilegiado, cuja eventual pena é cumprida em regime aberto ou, no máximo, semiaberto. Mais uma vez, alegando a alta quantidade de drogas, a juíza afastou minha argumentação, convertendo o flagrante em preventiva.

Nunca soube o destino do caso, mas é possível que o sujeito tenha respondido o processo preso, sendo solto na sentença penal condenatória. Punição judicial o nome disso, que decorre da vontade do juiz de pesar a mão onde o legislador não o fez.

A Audiência de Custódia poderia ser um lugar de debates sinceros, onde se questiona as medidas policiais adotadas na hora da prisão em flagrante. Poderia ser um lugar que proporcionasse uma racionalização do trabalho policial, para sua qualificação técnica e material.

Fato é que, antes mesmo da entrada do preso e do advogado, a maioria dos casos do dia já está decidida. Sem alterar em nada o modelo anterior, de mera análise do Auto de Prisão em Flagrante Delito pelo juiz, a Audiência de Custódia se transformou em teatro de formalidades, onde cada personagem cumpre seu papel protocolarmente. Apenas burocratizou-se o momento de análise do AdPF.

Em crimes de drogas, de forma mais sensível, pouco importa a jurisprudência do Supremo de que a gravidade em abstrata do delito não é argumento idôneo a fundamentar a preventiva. Pouco importa se 2 kg é uma quantidade relativamente pequena, típica do vendedor de varejo, já na ponta do tráfico e na base da hierarquia do crime organizado. Pouco importa se esse aventureiro de primeira viagem vai entrar em um sistema penitenciário falido e estreitar seus laços com o crime. Pouco importa se é um crime sem ameaça direta a terceiros, como roubo e homicídio tentado. Pouco importa se domicílios ou aparelhos celulares são sistematicamente violados. Pouco importa o grande traficante, que nunca guarda droga em casa. Pouco importa o Direito.

Transação penal e delação premiada são compatíveis com o sistema acusatório?

Muitas pessoas argumentam que a importação de institutos americanos como o plea bargaining, bem como a inserção no sistema brasileiro de medidas despenalizadoras (como a transação penal e a suspensão do processo ou da pena), e até mesmo da delação premiada, aproximaria nosso direito penal e processual do modelo acusatório.

A verdade é que o modelo acusatório “puro” é manifestação do que se entende por direito penal de 1ª velocidade, ou seja, aquele que se baseia nas liberdades negativas, com respeito à autonomia do indivíduo e valorização da liberdade, sendo o direito penal restrito à aplicação de penas privativas de liberdade somente em relação à proteção dos bens jurídicos vinculados a direitos fundamentais individuais ou coletivos mais importantes.

Assim, havendo a possibilidade de uma conduta ser punida com mera prestação pecuniária ou restrição a direitos que não a liberdade, ou ainda a sequer apreciação judicial da conduta, o garantismo entende que se trata de hipóteses que não justificam a invocação do direito penal. O direito penal só pode ser invocado quando a aplicação dessas medidas sejam inoportunas e desaconselhadas, por causarem perturbação social e risco ao infrator.

Além disso, o garantismo penal está sujeito ao princípio da jurisdicionalidade, que exige a passagem obrigatória por um processo de cognição de um juízo previamente constituído. Ou seja, o garantismo é refratário a qualquer tipo de tratamento penal extrajudicial, de decisões e aplicações de pena, ou de extinção de processo, sem a análise judicial da imputação.

O juiz, no garantismo, não é “alheio” no sentido de que é estranho às partes ou ao processo. Ele é alheio ao interesse das partes, o que justifica seu dever de afastamento das atividades probatórias no processo. No entanto, o juiz é figura necessária no garantismo, sendo impossível qualquer aplicação de pena sem sua prévia análise cognitivo-fática. Taí talvez a principal diferença entre os modelos adversarial e acusatório. 

A atividade negocial ofende as garantias básicas do processo penal. Primeiro porque deixa de existir parâmetros legais de igualdade, em que a medida penal aplicada pode variar conforme a negociação realizada e, inclusive, conforme o poder de negociação dos acusados frente o MP. Segundo porque amplia os poderes decisórios, e também de constrição pessoal, dos órgãos de persecução penal, afastando o direito penal da Justiça e aproximando-o do Executivo e, consequentemente, de um Estado de Polícia. Terceiro porque há um necessário aumento da malha penal, com a criminalização de condutas penalmente irrelevantes, o que não só retira o devido crédito do direito penal como favorece o processo de criminalização desmedido sobre a população.

Por fim, como última consideração, o que pretendo fazer mais profundamente em outro post, vale mencionar a verdadeira coação judicial que é a transação penal. Fosse de fato um processo penal baseado em possibilidades de verificação e de contraprova, o sujeito imputado poderia até ter a liberdade de escolher o acordo com o MP ou o processo judicial.

Contudo, percebe-se que a grande parte dos crimes sujeitos à lei dos juizados é de cunho valorativo e tipicamente abertos, o que concede demasiado poder dispositivo ao juízo, vindo a condenar não só porque pode decidir como bem quiser, mas também por mera punição à ousadia de negação à transação e, claro, por ocupar o valoroso tempo dos reis de toga.

Abaixo, deixo um trecho da obra de Ferrajoli. Eloquente, me convenceu mais uma vez. Vale a pena perder uns minutos lendo.

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A tese partilhada pela doutrina, e que logo se tomou um lugar-comum, de que os dois acordos ou transações são uma decorrência lógica do “método acusatório” e do “processo de partes” é totalmente ideológica e mistificadora. Como demonstrei no parágrafo 39.3, uma tese como esta, amparada na experiência do processo acusatório americano e, particularmente, do plea bargaining, é fruto de uma confusão entre um modelo teórico acusatório – que consiste unicamente na separação entre juízo e acusação, na paridade entre acusação e defesa, na moralidade e na publicidade do juízo – e os concretos caracteres do processo acusatório estadunidense, dos quais alguns, como a discricionariedade da ação penal e o acordo, não têm com o modelo teórico qualquer nexo lógico. A confusão, injustificada no plano teórico, é explicável no plano histórico: discricionariedade da ação penal e transação são, de fato, um aspecto moderno do caráter originariamente privado e/ou popular da acusação quando a oportunidade de agir e, eventualmente, a contratação com o imputado eram uma óbvia conseqüência da liberdade de acusação. Mas uma e outra são hoje de todo injustificáveis nos sistemas nos quais – como na Itália, mas também nos Estados Unidos – o órgão de acusação é público. O mesmo se diga da fórmula “processo de partes”, cujo uso com referência aos acordos ou transações é também impróprio e destorcido. A negociação entre acusação e defesa é exatamente o oposto do contraditório, que é próprio do método acusatório, e reclama acima de tudo práticas persuasórias consentidas pelo segredo, na relação ímpar que é própria da inquisição. O contraditório, de fato, consiste no confronto público e antagonista entre as partes em condições de paridade. E nenhum contraditório existe entre as partes que realizam o acordo entre si em condições de disparidade. Sem contar que, em um contexto como o italiano, culturalmente marcado pela experiência da emergência, esta prática pode produzir distorções ainda maiores daquelas encontradas no processo americano, prestando-se a operar como um instrumento de pressão para falsas acusações, favorecendo o aumento de denunciações caluniosas, deturpando o trabalho da defesa, gerando disparidade de tratamento e incertezas do direito, deprimindo ao final e ulteriormente os níveis já baixos da cultura judiciária em matéria de prova.

Além das fórmulas de legitimação existe, sobretudo, o perigo de que a prática do acordo ou transação – como de resto ficou demonstrado pela própria experiência americana – possa produzir uma grave perversão burocrática e policialesca de uma boa parte da justiça penal, e transformar o juízo em um luxo reservado àqueles quantos dispostos a afrontar as despesas e os riscos, e que o processo possa reduzir-se a um jogo de azar no qual o imputado, embora inocente, é colocado diante de uma escolha entre a condenação a uma pena reduzida, e o risco de um juízo ordinário que pode concluir-se com a absolvição mas, também, com uma pena enormemente mais alta.

A transação penal, de fato, não encontra outro fundamento senão o de um escambo perverso. No confronto desigual com a acusação, o que pode dar o imputado ou indiciado, em troca da redução da pena senão a própria declaração de culpabilidade ou a chamada de co-réu, embora infundada, de outros imputados? E o que garante que um cidadão inocente, mas privado de defesa, vendo frustrar o seu clamor de inocência e descrente na justiça, embora contra sua vontade, não venha aceitar a transação quanto ao rito ou a redução de um terço da pena ou, ainda melhor, o acordo sobre a pena e portanto a sua diminuição de “até um terço” que significa um epílogo imediato do acontecimento com o máximo de dois anos de reclusão, a extinção do crime depois de cinco anos e talvez a suspensão condicional da pena? E nos casos mais graves, quem deterá o imputado que tenha perspectiva da prisão perpétua de mover falsas acusações em troca do consenso do Ministério Público ao juízo abreviado e, portanto, à redução da pena a 30 anos, ainda propensa a reduzir-se à metade em sede de execução? É evidente que por meio destes procedimentos é de fato introduzido no nosso ordenamento o discutido instituto da colaboração premiada com a acusação. Com o agravante de que ela não foi codificada abertamente, mediante a previsão de uma circunstância atenuante, mas de forma sub-reptícia, por meio de um mecanismo idôneo a incentivar os procedimentos acordados e desencorajar o juízo ordinário, com todo o seu sistema de garantias; que ela não é mais uma medida excepcional, conjuntural e limitada a determinados tipos de procedimentos, mas sim um novo método processual codificado para todos os processos; que, enfim, o benefício da pena não será concedido por um juiz no curso de um juízo público, mas pela própria acusação no curso de uma transação destinada a desenvolver-se em segredo.

Disto resulta a devastação do completo sistema das garantias: o nexo causal e proporcional entre a pena e o crime, dado que a medida da primeira dependerá, muito mais do que da gravidade do segundo, da habilidade negociadora da defesa, do espírito de aventura do imputado e da discricionariedade da acusação; os princípios da igualdade, da certeza e da legalidade penais, não existindo qualquer critério legal que condicione a severidade ou a indulgência do Ministério Público, e que discipline o seu engajamento com o imputado; a não derrogação do juízo, que significa a não fungibilidade da jurisdição e das suas garantias, assim como a obrigatoriedade da ação penal e a indisponibilidade das situações penais elididas pelo poder do Ministério Público de mandar soltar aquele que se declare culpado; a presunção de inocência e o ônus acusatório da prova, negados substancialmente – já que não formalmente – pela confissão interessada; e o papel de subordinação do indiciado em relação à acusação e à defesa; o princípio do contraditório, que reclama o conflito e a clara separação dos papéis entre as partes processuais. A própria natureza do interrogatório resulta pervertida, sendo não mais meio de instauração do contraditório por meio da contestação da acusação e a exposição da defesa, mas relação de forças entre inquisidores e inquiridos, na qual ao primeiro não incumbe nenhum ônus probatório mas, apenas, a opressão sobre o segundo e registrar as auto-acusações.

É lícito perquirir, diante de similares procedimentos transacionais e, em particular, com relação à transação sobre a pena, se verdadeiramente se possa considerá-los como “ritos alternativos”, ou se seria mais apropriado denominá-los de medidas alternativas ao processo. De fato, eles podem resolver-se em um tipo de justiça de cádi controlada pela acusação, à qual é reconhecida uma total discricionariedade na decisão de consentir o juízo abreviado ou de concordar com o imputado a medida de redução da pena, e, também de outro lado, as suas promessas não se referem – como no mecanismo premiador que foi próprio da lei sobre os arrependidos – a benefícios que deveriam ser valorados futuramente pelo juiz, mas a uma sua autonomia e muito mais crível poder; por outro lado, fora de quaisquer vínculos ou critérios legais, a mesma confissão, se não é rigorosamente necessária, pode não ser suficiente a induzir o Ministério Público a realizar o acordo, podendo exigir, além dela, a delação dos co-autores. Privado do poder de captura preventiva – mas não daquele da prisão temporária – o Ministério Público é, pois, investido de um enorme poder de predeterminação sobre o juízo do mérito, o que contradiz a sua natureza de parte em posição de paridade com o imputado, que é o traço mais característico do modelo teórico acusatório, e compromete de fato o próprio princípio constitucional da obrigatoriedade da ação penal. E verdadeiramente claro que, para a maior parte dos crimes, o poder da acusação pública de concordar com a diminuição da pena até dois anos, e de tornar possível a sua suspensão condicional , e, pois, a extinção do crime e de quaisquer efeitos penais equivale, na prática, a subtrair do imputado seja o processo seja a pena. E é de refletir-se por quanto tempo pode um poder tão desmesurado, decisivo para a sorte do processo e para a medida da pena, mas privado de qualquer característica “jurisdicional”, não despeitar as aspirações adormecidas do Poder Executivo e trazê-lo para o seu próprio controle.

Referência: Ferrajoli, Direito e Razão, Cap. X, 45.5 (com destaques meus).

A briga entre o MP e a Aeronáutica: ADI 5.667

Este texto é apenas uma intenção inicial de aprofundar as reflexões referentes à ADI 5.667, em que a PGR busca a declaração de inconstitucionalidade de alguns dispositivos da lei 12.970, de 2014. Sem entrar nas minúcias da ADI, vou escrever somente sobre os aspectos mais importantes.

A questão mais relevante na ADI se refere à vedação legal do uso do parecer técnico da Aeronáutica (Sipaer e Cenipa) acerca dos acidentes aéreos para fins probatórios nos processos judiciais e administrativos.

Resultado de imagem para pf  aeronáuticaBusca o Ministério Público que o parecer técnico possa ser juntado em processo penal como prova, ou seja, para a finalidade de condenar ou, eventualmente, inocentar alguém.

A primeira questão é, portanto, compreender o sentido dessa vedação legal, presente do art. 88-I § 2º da lei 12.970.

A dinâmica que envolve investigação de acidente aéreo se volta exclusivamente para o interesse público de prevenção de acidentes, sendo-lhe estranhos quaisquer outros possíveis interesses que decorrem de eventual acidente aéreo, seja civil ou penal.

Assim, como prevê o art. 88-A § 2º, se o perito aeronáutico tiver razões para crer que a investigação não gerará nenhum fruto para a finalidade específica de prever acidentes, a investigação poderá ser interrompida ou, simplesmente, não feita.

Com o objetivo de elucidar as possíveis causas de um acidente, os envolvidos, pessoas ou empresas, podem ser intimadas a colaborar. A vedação legal, nesse sentido, busca proteger o interesse preventivo ao trazer a tranquilidade para os envolvidos em colaborar, sem que haja o temor de uma possível incriminação. A garantia dada pela Aeronáutica, com respaldo legal, de que o depoimento não será usado contra o próprio depoente em outro procedimento, é absolutamente fundamental para o sucesso da atividade preventiva. O mesmo se aplica a empresas, que eventualmente podem ser cobradas a revelar os procedimentos tomados em determinado voo ou acerca da manutenção de determinada peça do avião.

Em síntese, os colaboradores na investigação aeronáutica precisam ter a garantia de que não são eles os investigados, e sim as causas do acidente.

Se vingar o posicionamento do MP, dois problemas iminentes surgirão:

Na medida em que o Ministério Público puder usar a investigação aeronáutica para fins probatórios em processo penal, a colaboração dos envolvidos no acidente aéreo será dificultada, sendo que elas são muitas vezes fundamentais para se determinar as causas de um acidente.

Outro aspecto é a contaminação do trabalho aeronáutico. Ora, se os peritos técnicos sabem que seu parecer pode ser determinante para o destino processual dos envolvidos, haverá necessariamente uma preocupação a mais, nem que seja um cuidado especial sobre determinado quesito, eventualmente deixando de assinalar determinada hipótese sobre a causa do acidente, ou, ainda, dando mais atenção para determinado elemento investigativo. Sem contar o fenômeno imediato de que, à custa do prestígio e capacidade técnica da Aeronáutica, aumentará a pressão de órgãos investigativos e persecutórios (como PF e MP), e até mesmo de advogados, sobre o Cenipa, para que direcionem seus pareceres técnicos conforme seus respectivos interesses, dando ou retirando ênfase em determinado item da investigação.

Essas pressões, em que pese já existentes, serão ainda mais fortes no caso de acolhimento da ADI.

No fim das contas, busca o MP que a Aeronáutica se transforme na fonte da informação preliminar, favorecendo a indesejável situação de a Polícia Federal simplesmente se abster de realizar as investigações devidas, vez que já realizada pela Aeronáutica. Tal situação é absolutamente incompatível com as respectivas atribuições constitucionais. A Aeronáutica não pode se prestar à atividade de polícia judiciária, e os dispositivos legais impugnados pelo MP são justamente o que garante que cada órgão cumpra seu papel constitucional.

Erra conceitualmente o MP, na petição inicial da ADI, quanto ao instituto da verdade real, levantado como princípio norteador do processo penal. Em quase todo o corpo da petição há referência ao modelo acusatório, onde o princípio não encontra respaldo, inclusive com indicação de autores que o rejeitam. Ou seja, a ADI é incoerente em sua opção de base argumentativa, misturando institutos incompatíveis entre si.

Não bastasse se tratar de princípio obsoleto e caro a modelos autoritários, o que se observa com clareza é a coerência da lei impugnada com a superação epistemológica da ideia de verdade real.

E por que o princípio é insustentável? Bom, a argumentação está logo acima. O interesse e o objetivo finais de uma investigação determinam o objeto de análise, as questões a serem formuladas, os princípios envolvidos e as conclusões. Além disso, há de se respeitar a atribuição constitucional de cada órgão, com o devido respeito, para fins de coerência, entre meios e fins. Na lógica do MP, no caso, não importa o meio, mas somente o fim, e, mais precisamente, seu fim.

Cabe à Polícia Federal investigar, para fins criminais, os acidentes aéreos. Essa investigação, por sua vez, é demarcada com interesses e objetivos próprios, diferentes daqueles da investigação aeronáutica. Exagera o MP na ADI, contudo, quando diz que o trabalho técnico da Aeronáutica inviabiliza ou obstaculiza a investigação criminal. Há mecanismos legais e institucionais que permitem o acesso paralelo aos elementos de investigação, devendo os peritos aeronáuticos, obviamente, ficarem atentos a possível perecimento ou inutilização (para fins periciais) desses elementos, em respeito ao outro órgão.

Por fim, espanta saber que o MP realmente crê que o interesse investigativo criminal deve prevalecer sobre o interesse preventivo nos acidentes aéreos. O desejo de punir jamais deverá estar acima do interesse de se evitar novas vítimas, principalmente nesse contexto específico de aviação. Assim, mais do que correta a previsão legal (impugnada pelo MP) de precedência da Aeronáutica sobre a Polícia Federal na investigação de acidentes aéreos.

Enfim, trata-se apenas de questionamentos iniciais. Vamos aos estudos.

 

A importância da filosofia no estudo do Processo Penal

Vincenzo Manzini foi o principal penalista italiano do período fascista. Ele foi o responsável pela elaboração do código de processo penal italiano, a mando do jurista do regime  Alfredo Rocco. Daí o código ser comumente chamado de Código Rocco.

No Brasil, semelhante tarefa foi atribuída a Francisco Campos. O jurista, grande nome do regime autoritário de Getúlio Vargas, foi fortemente inspirado pelo regime fascista, inclusive vindo a citar expressamente o Código Rocco na exposição de motivos do nosso CPP.

A parte “boa” é que a exposição de motivos do CPP (que disponibilizo aqui) realmente expõe sua matriz autoritária, e com clareza. Critica o excesso de garantias dos modelos anteriores, relativiza a presunção de inocência, amplia as possibilidades da prisão em flagrante, reduz o valor das nulidades e, principalmente, amplia os poderes instrutórios do juiz.

Essas duas últimas intenções (enfraquecimento das nulidades e atuação ativa do juiz), têm o pressuposto filosófico demarcado na ideia de verdade real (ou substancial ou material). Como o próprio Francisco Campos diz:

O projeto abandonou radicalmente o sistema chamado da certeza legal (…) Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material.

Ao iniciar o tema “Teoria da Prova”, é mais do que necessário discutir o tema verdade, o que não é tarefa simples. Temos de sair da zona de conforto manualística e entrar na espinhosa e provocativa filosofia. Invariavelmente, discute-se lógica, linguagem, epistemologia, teoria da ciência e, quanto à memória, certo grau de psicologia.

Se, de um lado, parece óbvia a relação dos temas prova e verdade no processo penal com a filosofia, menos evidente é a relação desses temas com a política. Por que a verdade real é uma ideia sempre presente em regimes autoritários?

A dificuldade no ponto é tentar demonstrar como que a ignorância científica ou filosófica repercute nos modelos políticos. Afinal, mais do que mera opção entre dois modelos possíveis no âmbito do conhecimento e da interpretação da norma processual penal, trata-se, com efeito, de reconhecer que o modelo político democrático e de direito só é possível com a adesão desse conhecimento teórico acumulado já há quase meio milênio.

Mesmo com a limitação imposta por nossa formação jurídica na compreensão do fenômeno político e da filosofia, não podemos nos abster dessas discussões de base. Não lavemos as mãos para as consequências de uma compreensão pobre de direito e, ainda, de uma aplicação autoritária da lei processual penal.

Argumento a favor da importância da discussão filosófica no Processo Penal com palavras do próprio fascista Manzini:

Resulta absolutamente supérflua, para nossos estudos, aquela parte estritamente filosófica que os criminalistas dos séculos XVIII e XIX costumavam levantar em suas exposições. Buscar os chamados fundamentos supremos e a noção do direito… hoje já não é mais permitido a uma disciplina eminentemente social, positiva e de bom senso, como é a nossa (V. Manzini, Trattato di diritto penale italiano, Utet, Torino, 1933, vol. I, par. 3, p. 6)

Os filósofos, com seus artificiosos sistemas, nada criaram… A filosofia nunca teve e nunca terá influência alguma sobre as relações sociais, se não reflete a consciência e a opinião da coletividade dominante (Trattato di diritto processuale penale italiano secondo il nuovo códice, Utet, Torino, 1931, 1, p. 63). 

Extraído da página 196 do livro de Ferrajoli, Teoria e Razão, edição de 2002.

Ferrajoli faz uma crítica ao formalismo ético, aquele que se abstém da discussão de legitimidade externa e axiológica do direito, justamente por compreendê-los enquanto possível validador de Estados com limites de poder indefinidos ou ilimitados, cuja expressão máximo é o êxito do fascismo.

Em síntese:

O estudo acrítico do direito é funcional ao fascismo. 

Por que o novo crime da Lei Maria da Penha não é um avanço?

A Lei Maria da Penha (nº 11.340/06) é revolucionária. Além de reconhecer o problema público da violência de gênero no contexto doméstico, com ela se compreendeu bem que o direito penal, por si só, é ineficiente enquanto solução para esse tipo de criminalidade.

A preocupação com as medidas protetivas e com competência de jurisdição específica para o trato dessa sensível questão, ainda que minimamente, forçou uma adequação do Judiciário em lidar diretamente com a vítima, real foco da lei e da militância feminista.

Ou seja, reconheceu-se que a solução não passa por mais criminalização, mas sim com medidas direcionadas à vítima e ao agressor. Foi uma lei avançadíssima e o fato de não haver uma sequer conduta criminalizadora significava um passo além na política criminal.

No entanto, no dia 04 de abril de 2018, foi inserido o art. 24-A, com a seguinte redação:

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

Salta aos olhos que a preocupação do legislador é apenas secundariamente com a mulher. O crime tutela diretamente a Administração da Justiça, e se insere como mais um dos crimes contra o Estado, na mesma lógica do autoritarismo punitivista simbólico que tem avançado no Brasil, mesmo a toda evidência desse enorme problema.

Isso trará questionamentos acerca da aplicação ou não da Lei nº 9.099/95, cuja aplicação é vedada para crimes “praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher” (Art. 41 da LMP). Embora seja possível que o descumprimento da medida protetiva se dê na forma de violência contra a mulher, fica difícil sustentar que todo e qualquer descumprimento seja presumidamente uma conduta violenta contra a mulher.

Por tutelar primariamente a Administração da Justiça, meu entendimento é que a aplicação ou não da Lei nº 9.099/95 vai depender da forma como o descumprimento foi realizado, criando um imbróglio constante e, pior ainda, concede mais poder discricionário e arbitrariedade ao julgador, fenômeno que deve ser evitado ao máximo.

Pode-se dizer que, por uma questão de competência, o processamento será feito no próprio juízo que determinou a protetiva, impossibilitando a mescla de dois procedimentos distintos para um mesmo contexto. Por outro lado, sendo o procedimento da Lei 9.099 mais benéfico para o réu, possibilitando a transação penal e outras medidas despenalizadoras vedadas na LMP, entendo que esse deva ser o entendimento a ser aplicado. Acredito que somente um entendimento de tribunal superior porá fim a essa controvérsia.

O problema acima decorre de outro ainda mais sensível, que é justamente a falta de clareza necessária sobre a conduta criminalizada.

Sei que muitos doutrinadores não entendem assim, mas não consigo deixar de ver os crimes de desobediência e, agora, o de descumprimento de medida protetiva, como norma penal em branco. Tratam-se de tipo penais extremamente abertos que remetem à condutas diversas.

No mundo fático, todo e qualquer descumprimento de medida protetiva é uma conduta não especificada no próprio tipo penal.

Por exemplo, se a medida protetiva imposta é a separação de corpos, com necessário afastamento de 500 metros, a conduta criminalizada é “aproximar-se de quem foi determinado o afastamento”. No mesmo sentido, se a medida impunha a não frequentação de determinado lugar, a conduta efetivamente criminalizada é “frequentar local individualmente proibido”.

O crime, portanto, criminaliza um conjunto indeterminado de condutas não especificadas legalmente, mas sim judicialmente, inclusive com definições e previsões determinadas pelo juiz no caso concreto, com nuances e detalhes próprios de cada caso.

Não bastasse isso, será provavelmente o próprio juízo que determinou a protetiva, cuja autoridade foi violada no descumprimento, que fará o processamento e julgamento do feito. Tem-se aí flagrante violação ao princípio da imparcialidade. Seria como se o julgamento de eventual desobediência contra ordem de um policial fosse julgada (olha só) pelo próprio policial que deu a ordem!

Outro problema gravíssimo é o seguinte: como agora descumprir a protetiva é crime, a questão passa a ser regida pelos princípios próprios do direito processual penal, como presunção de inocência e ônus da prova para a acusação.

Se antes o descumprimento passava pelo crivo direto da autoridade judicial, possibilitando-a, desde logo, determinar medidas mais severas, até mesmo a prisão preventiva, como se argumentará que um crime não apurado, cujo autor se presume inocente, pode servir de base para agravamento da situação do agressor no procedimento da MPU?

Por óbvio, a presunção de inocência e o ônus da prova serão, mais uma vez, meras anedotas contadas nas salas de aula. Porém, o questionamento será feito, e com razão.

Não acho que o crime põe fim à discussão do bis in idem. Veja bem, se o descumprimento da protetiva implica em agravamento das cautelares, já há medida legal e judicial de reprimenda à conduta. Além dessa punição, é legítimo somá-la com a do art. 24-A? Penso que não. Assim, não acho que está superado o problema levantado com a aplicação do crime de desobediência para o descumprimento de MPU’s. Pelo contrário.

E quando a medida protetiva é imposta à ofendida? Ela também está sujeita ao crime? Nos termos do art. 23 da LMP, o juízo pode determinar à ofendida algumas medidas protetivas. Trabalhei em um caso em que a própria ofendida descumpriu a medida de afastamento do lar determinada pela juíza. Ela, então, estaria sujeita ao crime? Soa absurdo. Ora, a rigor, não há nenhuma previsão legal que permite afastar a aplicação desse crime à mulher. Eis aí mais uma questão.

Na prática, quando havia descumprimento das protetivas, o juízo poderia analisar a situação concreta dos envolvidos para, então, determinar novas medidas ou não. Muito comum é o retorno do casal à convivência por decisão da própria mulher (sei que a questão é sensível e, muitas vezes, não tem um final feliz, mas é uma realidade a ser considerada).

Bom, nessas hipóteses, o crime deixa de existir? Falta-lhe justa causa? Acredito que a saída judicial para esse imbróglio será essa, o que definitivamente confirma os objetivos com o novo crime:

Aumentar o poder discricionário da autoridade judicial, facultando-lhe a manipulação da lei penal como melhor entender.

A seletividade e o arbítrio comemoram. A lei perde o foco.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O acusado tem o direito de mentir?

Não existe na lei o direito expresso de mentir. O que há, a rigor, é o direito ao silêncio, que decorre diretamente do direito de não se autoincriminar. Daí se questiona se desse silêncio decorre, por lógica, o direito de mentir.

Bom, se não tenho obrigação de votar, tenho o direito de não votar, certo? O exemplo explica bem porque o direito ao silêncio é uma consequência lógica do direito à não autoincriminação, mas não indica nenhuma resposta à possibilidade de mentir.

Podemos dizer, portanto, que eventual direito de mentir não decorre diretamente do direito ao silêncio. Este, como postura passiva diante de uma acusação, não implica necessariamente a possibilidade de uma postura ativa de mentira.

No mesmo sentido, se uma pessoa não é obrigada a se autoincriminar e a verdade o incrimina, ela tem também o direito de não dizer a verdade. Pode-se dizer, então, que o direito de não dizer a verdade daria origem ao direito de mentir?

Penso que essa derivação também seja falha. O direito de não dizer a verdade é apenas o outro lado da mesma moeda do direito ao silêncio, inexistindo uma relação de dependência entre ambos.

Assim, voltamos ao princípio norteador, o da não autoincriminação. Será que dele decorre o direito de mentir?

Vale notar que nem todos que optam pelo silêncio são culpados. Não existe essa lógica. Um fato investigado como possível ilícito pode não necessariamente ser um crime, mas simplesmente um fato vergonhoso que não se quer expor. Pode-se optar pelo silêncio também porque a verdade pode ser um meio para descoberta de outro crime não investigado ou, ainda, para defesa da intimidade, acerca de fatos ou pensamentos que se deseja proteger.

Uma conclusão precipitada certamente diria que o direito de mentir não existe, sustentando a tese de que a mentira deva ser punida e desencorajada pela legislação. Por quê? Qual seria o desvalor da mentira?

Não há como dissociar o desvalor da mentira a uma questão moral ou religiosa. Moral porque seria um imperativo de comportamento em que a mentira é considerada um vício, em oposição à virtude.

Mas o dever com a verdade, no sentido grego ou no sentido kantiano, se vale de uma ideia de verdade ou de moral universal, a ser seguida por todos. Assim, o mentiroso será sempre uma pessoa sem virtude ou, na melhor das hipóteses, um ignorante, com pouca sapiência para identificar as coisas como elas de fato são.

Por sua vez, no âmbito religioso, a verdade pode ser encoberta entre as pessoas, mas jamais perante Deus. O dever com a verdade, portanto, se daria perante Deus. A mentira com o outro, nesse sentido, significaria um distanciamento do caminho divino.

Mesmo no âmbito religioso, contudo, o dever com a verdade, sob os olhos de Deus, deve ser exercido por meio da confissão. A confissão é encorajada, sendo o retorno ao caminho do encontro divino. No entanto, só a confissão não é suficiente, devendo ser sucedida de penitência, para purificação. A punição do pecado, portanto, vem de qualquer forma, seja na forma de penitência purificadora ou pelo julgamento divino.

Por ser tão importante, a confissão é também protegida contra desencorajamentos externos. Para haver ali o encontro direto com Deus, há necessário afastamento às aflições humanas, como, por exemplo, a punição da conduta sem função de penitência ou simplesmente julgamentos morais de terceiros. Daí me parece advir o dever de sigilo do padre que ouve o pecador. Em síntese, para que haja o devido respeito às funções da confissão, o confessionário deve ser um espaço protegido, pois, do contrário, muitos fiéis poderiam deixar de confessar por temer represálias externas e não divinas.

Quando, portanto, pelo direito, se busca valorar o dever com a verdade, há prejudicial aproximação com moralismo ou religiosidade. Se óbvia é a necessidade de afastamento do direito com a religião, a de distanciamento do direito com a moral não é de simples compreensão. Seu sentido existe, por exemplo: para se evitar subjetivismo e seletividade dos legisladores e julgadores, respeito ao livre desenvolvimento de pensamento e de crítica, respeito às diferenças culturais e religiosas, enfim, um reconhecimento de que o moralismo pelo direito é sempre uma arma de controle dos detentores do poder, e que não existem parâmetros cognitivos ou políticos o suficiente para se definir os contornos de uma moral superior que deveria prevalecer sobre as demais.

Por outro lado, se a separação entre direito e moral levada a extremos apresenta riscos, que já conhecemos bem, fato é que não podemos desvincular-lhes completamente, sob pena de o direito servir de base para regimes autoritários e, olha só, moralistas.

Assim, talvez possa se dizer que a moral no direito é aquela que defende os princípios democráticos, tendo como pilar central a dignidade da pessoa humana.

A digressão acima é proposital e necessária. Pois se há alguma possibilidade jurídica de punição à mentira, ou um simples dever, ela não pode justificar-se em princípios religiosos ou de cunho meramente moral, mas tão somente enquanto instrumento de efetivação dos valores democráticos.

Se a Igreja pode exigir do fiel o dever com a verdade, o mesmo não pode ser uma exigência estatal com quem responde por um crime. Pois se há a promessa de salvação com a penitência, a pena estatal não cumpre esse papel. Tampouco a ressocialização ou reintegração pode substituir a ideia de salvação, tampouco se pode tentar transformar imperativos hipotéticos em imperativos categóricos. Se a pena é uma aflição forçada, ela não pode se estender à compreensão de mundo e à liberdade de pensamento e crítica dos condenados. Do contrário, estaríamos admitindo a punição no nível do pensamento e da intimidade para além da restrição à liberdade.

Se a ninguém compete, individualmente, a escolha da pena a ser imposta em decorrência de uma conduta criminosa, tampouco pode o Estado exigir que o condenado compreenda como justa ou adequada eventual punição estatal.

Digo isso porque mesmo que, no íntimo, o cidadão possa admitir o erro que cometeu, acreditando haver adequação de determinada penalidade, ela não precisa ser necessariamente a pena que o Estado lhe obriga cumprir. Tampouco o Estado pode exigir-lhe arrependimento ou qualquer espécie de anuência com a pena imposta.

Assim, se ao condenado é imposta uma penalidade, há de se admitir a possibilidade de irresignação individual contra ela, seja por compreendê-la injusta ou por inadequação. Por óbvio, isso não afeta a legitimidade da pena imposta se devidamente construída por meios democráticos.

Disso decorre o óbvio: o direito de querer evitar a pena de uma conduta incriminável. Esse direito não se limita a questões processuais, como os atinentes à atividade probatória. Daí decorre, por exemplo, a impossibilidade de tipificação penal das condutas de evadir-se quando há mandado de prisão aberto ou tentativas de fuga de presídios.

A mentira do acusado, nesse sentido, que pode ser compreendida como consequência do direito à não auto incriminação, tem relação com esse direito de irresignação e inconformismo contra possíveis penalidades, valendo-se como proteção à autonomia de pensamento e de consciência.

Não caio nas tormentas da discussão sobre a natureza humana, como a “tendência natural” de evitar aflições. O apego à verdade e a resignação com as penas estatais são de fato uma possibilidade, da mesma forma que o contrário. Não se trata de natureza humana, mas de possibilidade.

Um sujeito pode tanto querer se entregar e se submeter à pena, como Raskolnikov em Crime e Castigo, como pode querer evitar a pena a todo custo, como o pai intransigente de Capitão Fantástico. As razões desses dois personagens são bastante distintas, mas ambas são claras manifestações de coerência com suas próprias convicções morais. E nunca será legítimo o Estado exigir para si mais fidelidade do cidadão do que a si próprio e à sua consciência.

O direito do acusado de mentir, portanto, está ligado ao respeito à autocrítica, ao pensar livremente e de ter autonomia moral frente às opções políticas predominantes na democracia. E qualquer espécie de coação ou ameaça a esse direito é, por essa razão, antidemocrático. O que mais se vê, contudo, são restrições ao exercício desse direito, especialmente nos momentos que antecedendo e sucedem a detenção.

É possível dizer, sem medo, que quanto mais próxima a detenção está da inquirição mais é provável que o sujeito tente se esquivar da punição. Sem o período de reflexão e sem os contornos claros do que pode acontecer no futuro, menos é provável a contribuição voluntária e precisa com as intenções investigativas.

Ainda que se tenha que admitir a ocorrência de depoimentos verídicos no depoimento logo após o flagrante, a menor experiência na advocacia criminal já demonstra que também é um momento em que as histórias mais mirabolantes e inverossímeis surgem.

Jamais me esquecerei de um assistido que, buscando esquivar-se da possível imputação, criou uma história (mentirosa) que veio a incriminá-lo ainda mais. Desespero e ignorância foram os ingredientes da mentira. Não por outra razão, o valor de prova desses depoimentos, como de flagrante ou de condução coercitiva, sejam tão questionáveis, ainda que haja insistência das polícias e do Ministério Público em sentido contrário.

Pelas razões acima, é difícil compreender a criminalização de indivíduos que se atribuem falsa identidade (art. 307 do CP) para evitar o cerceamento de sua liberdade. Os defensores da tese que criminaliza a conduta entendem estar presente a intenção de obter vantagem indevida. O problema é que, neste caso, considerar a intenção de evitar a prisão como conduta incriminável é o mesmo que exigir da pessoa que contribua com o Estado para sua detenção.

Neste ponto, contudo, julgo necessário fazer uma ponderação. Por óbvio, há limites para esse “direito” de evitar prisão e incriminação. Homicídio e ameaças a testemunhas, por exemplo, ultrapassam e muito a possíveis consequências do princípio envolvido. Contudo, a questão é mais complexa quando o sujeito passivo de eventual crime é o próprio Estado, o que pode ser observado no já citado art. 307, fraude processual (art. 347), resistência (art. 329) ou denunciação caluniosa (art. 339), todos do Código Penal.

Contudo, não me parece adequado a aplicação desses crimes para acusados ou investigados. A responsabilidade de resguardo das investigações e do cumprimento das medidas legais de restrição à liberdade não pode ser compartilhada com o próprio investigado. E justamente por essas razões ao Estado é garantido o uso exclusivo da força e de medidas extremas como as prisões cautelares.

Por outro lado, se o Estado não pode exigir que o investigado contribua para sua própria aflição, até mesmo porque dispõe do uso da força para obter a detenção e as provas, ele pode puni-lo quando o sujeito fere direitos de terceiros no ímpeto da impunidade, vindo a cometer crimes como homicídio, extorsão ou calúnia.

Quanto mais autoritário o Estado, mais ele busca obrigar os cidadãos a contribuir com ele. E aí entra o dilema do Estado de Direito Democrático que, ainda que não cometa abusos nas investigações, sendo por isso legítimo, na medida em que passa a exigir a esperada reverência, se contamina e se aproxima do autoritarismo, perdendo sua legitimidade democrática.

O que existe, portanto, é o dever do Estado, como meio de controle interno contra abusos, de não exigir  a alguém que com ele contribua para sua própria aflição. Assim, o princípio da não autoincriminação tem como consequência lógica (corolários) tanto o direito de não dizer a verdade, o direito ao silêncio e, sim, o direito de mentir. O princípio não deve ser compreendido somente em sua natureza probatória, mas de modo amplo, no sentido de evitar que o cidadão seja coagido pelo Estado, por qualquer meio, de contribuir com sua própria desventura.

 

O Judiciário atual está chegando ao ponto de chamar de garantista o fascista de 41′ – ou sobre mandados de busca coletivos

Quando iniciei meus estudos em processo penal, fui informado sobre o quadro político da época em que nosso Código foi criado. Feito em plena ditadura varguista e com forte inclinação e inspiração no fascismo italiano, além de suas várias modificações ao longo de mais de meio século, precisávamos fazer uma leitura constitucional do processo penal.

A ideia seria a de fazer com que a força democrática da nossa Constituição superasse esse ranço autoritário originário na lei menor.

Não é à toa que as medidas de busca e apreensão são extremamente vagas e imprecisas na lei, o que acaba dando poderes por demais arbitrários às autoridades policiais e judiciais. O juiz brasileiro, ao contrário do americano, por ex., sequer precisa de esforço pra justificar as medidas, muitas vezes bastando sua assinatura com a tinta divina.

No entanto, mesmo nesse contexto, quando o legislador de 41’ previu a busca e apreensão em domicílio, já havia um mínimo de preocupação acerca do lar, asilo importante do cidadão contra o abuso estatal. (Você pode ler mais sobre a importância do domicílio como dimensão da privacidade no meu livro).

Fico pensando o que seria considerado abuso do Estado para um político admirador do fascismo.

Mesmo deixando relativamente em aberto, a lei exige que o juiz, ao expedir o mandado, indique, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador.

Há, na minha visão, clara vedação a mandados de cunho exploratórios. Mesmo sob a égide autoritária, ainda que não se saiba ao certo qual é a residência específica ou seu proprietário, devem haver indicativos suficientes para que se encontre o domicílio buscado, para que se evite ao máximo violações desnecessárias, além de outros elementos necessários aos mandados. Não acho que precisamos ir à Constituição para ter essa interpretação.

Escrevi isso tudo para dizer duas coisas.

A primeira é que busca e apreensão genérica ou coletiva não é busca e apreensão. Sua natureza jurídica é diversa, pois para ser busca e apreensão é necessário objeto e finalidade determinados. Não sendo, ou sendo genéricos, trata-se de outra coisa.

No caso, há utilização do termo para fins de legitimação da medida. Um joguinho de palavras para dar o contorno necessário da legalidade. É o mesmo com condução coercitiva sem prévia intimação na fase policial, que se assemelha muito mais com a extinta (?) prisão para averiguação.

Chamam de mandados coletivos porque não podem chamar pelo que é: suspensão da ordem jurídica, estado de polícia autorizado judicialmente, estado de exceção.

Mais honesto foi Getúlio quando, em 1942, suspendeu a garantia à inviolabilidade domiciliar da Constituição Polaca por meio de um decreto que instaurou o estado de sítio.

A segunda coisa que quero dizer com esse texto é o seguinte:

Se, quando comecei meus estudos em processo penal me diziam que temos que fazer uma leitura atualizada do Código, hoje digo aos iniciantes que o Judiciário atual está chegando ao ponto de chamar de garantista o fascista de 41′.