Traduzi uma entrevista de um professor nos EUA explicando porque nunca se deve falar com a polícia.
Segue o texto: https://deusgarcia.wordpress.com/2017/05/02/por-que-nunca-falar-com-a-policia/
Fiquei devendo um texto sobre a dinâmica no Brasil. Vamos lá.
Primeiramente, é preciso dizer que nem sempre é vantagem não falar com a polícia em uma abordagem. Dessa forma, as orientações do prof. americano não são aplicáveis ao contexto brasileiro em sua integralidade.
Em qualquer situação que seja, tente ser cordial, não use palavrões e não eleve a voz. Se possível, a depender da situação e havendo abertura, seja simpático, mas não dê início a conversas fiadas e descontextualizadas.
Em hipóteses menos críticas, o silêncio pode ser um fator negativo e compreendido como não colaborativo, o que pode ensejar uma revista mais rigorosa e ainda mais desagradável. Infelizmente, o pensamento policial brasileiro não compreende o direito ao silêncio, interpretando-o como anúncio de culpa.
Não fale absolutamente nada se não for provocado pelo policial. Não faça perguntas como “estou fazendo algo de errado?”, “por que fui abordado?”, “o que está procurando?”. Apenas responda às perguntas de modo direto e claro, sem alongar. O policial pode fazer perguntas como “tá vindo da onde?”, “vai pra onde?” etc. Essas perguntas, embora equivocadas, se não respondidas, poderão criar mais problemas que soluções.
No mesmo sentido, não fale coisas genéricas como “sou trabalhador”, “não tô fazendo nada de errado”. Por algum motivo, isso pode irritar os policiais e nunca ajuda. Ao contrário, apenas pode dar ensejo a mais perguntas indesejáveis.
Esse cenário acima é, tão somente, para as hipóteses não críticas, em que não há flagrantes. A exceção é o porte de drogas pra consumo pessoal, especialmente maconha. Isso porque a prisão em flagrante de usuário tem dependido quase que exclusivamente do perfil do usuário e de sua conduta frente à abordagem. Como costumam dizer, “policial tem mais o que fazer do que ficar levando maconheiro toda hora pra delegacia”.
O cenário acima é mais possível de acontecer em regiões centrais das cidades, de alta circulação ou nas áreas nobres. E vai depender bastante de como o policial dá início à abordagem.
Se possível, tente memorizar o máximo de informações possíveis, como a posição dos policiais na hora da abordagem, seus nomes, quais perguntas fizeram, o local etc.
Nas periferias, o cenário pode mudar drasticamente.
Havendo hipótese de flagrante, não há nenhuma dúvida que o melhor a fazer é ficar em absoluto silêncio, apenas declarando que só vai falar na presença de um advogado. Se houver pressão pra falar, resista e reforce seu direito.
Policiais, inclusive delegados, abusam da ignorância das pessoas quanto aos seus direitos. O tom é criado para fazer parecer que ficar em silêncio é uma conduta criminosa ou que pode corresponder à declaração de culpa.
O abuso dessa ignorância é hoje o que outrora foi a palmatória.
Nunca acredite quando o policial disser: “Fala que vai ser melhor pra você…” Nunca. Qualquer informação levantada será usada contra você. Uma pequena contradição poderá levantar mais perguntas e o processo de formação de culpa se concretiza muito antes da hora.
Quanto mais “enérgico” (eufemismo para agressivo) for o policial, mais tenha certeza de que o silêncio é a melhor pedida.
Na delegacia, chame um advogado e não fale absolutamente nada até sua chegada. Se não for possível ser atendido por um advogado, fique em silêncio. A única informação que pode ajudar é a de que você exerceu o direito ao silêncio desde a abordagem na rua. Isso pode ser usado para descreditar eventual afirmação de que você teria falado extraoficialmente.
Minha experiência criou a absoluta convicção de que o depoimento na delegacia sem orientação do advogado nunca traz bons frutos. Há até certo alívio quando, no primeiro acesso aos autos já em fase judicial, percebo que o sujeito ficou em silêncio na delegacia.
Há vários motivos para isso:
- A delegacia é um ambiente hostil para o preso. Não há informação devida sobre seus direitos, e, por suceder à prisão, o sujeito está nervoso ou, no mínimo, não refletiu sobre o que aconteceu nem ponderou sobre os detalhes que podem ajudar ou atrapalhar.
- Não há controle sobre como o delegado baixa a termo as declarações. O delegado acabou de ouvir os policiais que conduziram o flagrante e, provavelmente, está buscando no depoimento do preso confirmações para a história que, até mesmo inconscientemente, já está montada em sua cabeça.
- O depoimento na delegacia restringe muito as possibilidades de defesa. Havendo ali uma narrativa pronta sobre os fatos, qualquer alteração posterior corresponde a um preço muito elevado a ser pago.
- O depoimento na delegacia é utilizado na fase judicial apenas para demonstração de incoerências e contradições. Assim, mesmo havendo a mesma narrativa, sempre existirão pequenas incoerências. Primeiro porque quem escreve o depoimento não é o próprio depoente e, em segundo lugar, porque pequenas alterações ou falhas na narrativa são comuns, principalmente com um tempo grande entre cada depoimento, inclusive quando se está falando a verdade.
A orientação que costumo dar é a seguinte: o acusado só deve falar uma vez ao longo de todo o processo. No procedimento do júri, por exemplo, oriento que o acusado fique em silêncio na primeira fase e só fale perante os jurados. Isso retira das mãos do promotor um recurso bastante usado, que é confrontar as versões entre os depoimentos. Essa estratégia é utilizada mesmo quando os depoimentos sejam perfeitamente coerentes.
A exceção para essa estratégia é quando o depoimento na fase policial corresponde a uma real possibilidade de arquivamento do inquérito, ou quando a apresentação na delegacia pode afastar eventual pedido de prisão.
Abaixo fiz uma transcrição de um “diálogo” real entre um delegado (isso mesmo, um delegado!) e dois abordados que estavam dando ‘pinote’ na moto e um aparentando ser usuário de drogas ilícitas.
O trecho é retirado do seriado que está no netflix P.O.L.Í.C.I.A, que mostra o cotidiano de policiais civis e militares. Não sei como não têm vergonha de jogar no ar tamanho absurdo, como se o trabalho fosse heroico, produtivo e benéfico pra sociedade.
No seriado e no trecho abaixo, é possível observar como a mentalidade policial é ainda bastante inquisitorial, ora forçando confissões ora buscando simplesmente humilhar e desprezar os abordados.
A cena começa com um policial levando a dupla ao delegado.
- Policial: Um tem com um 157 assinado e outro tava com um baseadinho. Eles que deram pinote na moto aí…
- Delegado: Ah é? Quem q tem um 157 assinado?
- Abordado: Eu…
- D: Que que você rouba?
- A: Roubo nada não…
- D: Então como que vc tem um 157 assinado?
- A: Minha moto… confundiram minha moto num assalto… fiquei dois meses preso só
- D: Só? Achou pouco? Queria ter ficado mais?
- A: Não, jamais, senhor…
- D: Quem que tava pilotando a moto? Deu pinote por quê?
- A: Não… num tentei dar pinote não… a polícia chegou e parei a moto
- D: Cheio de argumento com polícia vc, ne… Confundiram sua moto? Porque que não foi a moto que assinou e foi vc?
- A: Então…
- D: Então… que gozado isso né… Foi roubo de quê?
- A: Foi uma bolsa eu acho
- D: Ah vc acha? Foi indiciado e não sabe por quê? Vc mora onde? Tava fazendo o que com esse moleque? Você mora onde? Tem tatuagem? Trabalha com o quê? Qual sua idade? A moto é sua? Que que você bebeu o quê? Catuaba? Tá ciente de que dirigir alcoolizado é crime?
- É habilitado?
- A: Sou, mas a habilitação tá na autoescola, com um problema…
- D: Que tipo de problema?
- A: Deu um problema com a numeração lá…
- D: Desde quando você é habilitado?
- A: Um mês só.
- D: Um mês só? Começou bem, um mês de e já foi flagrado alcoolizado dirigindo
- D: [Pro outro] Qual sua idade? Trabalha com o quê?
- Já foi preso ou processado?
- A: Não…
- D: Usuário de maconha?
- A: sou…
- D: E do quê mais?
- A: só…
- D: De onde veio? Você mesmo que foi comprar? Foi junto com ele comprar? Você é costumaz (sic), usa todo dia? Quem que ficou preso 2 meses? Achou q foi pouco… Quer ficar mais…
Enfim…
Conclua você mesmo: Valeu a pena abrir a boca?