Retirada forçada de prótese. Furto, roubo ou lesão corporal?

Esses dias participei de uma discussão interessante proposta pelo amigo Felipe Jacobner. Então, pegue seu Código Penal porque vou compartilhar.

Imagina um sujeito que usa uma prótese de braço responsiva a comandos do cérebro. Durante a noite, enquanto dormia, um terceiro lhe retira a prótese, causando certo grau de dor e vai embora.

Trata-se de furto, roubo ou lesão corporal?

No caso de subtração de prótese móvel, sem que haja qualquer tipo de lesão ao corpo, poderia se dizer que foi um furto.

Mas essas próteses fixas se dão pelo encaixe da peça ao membro amputado com conexão a nervos. Assim, não há dúvida de que há alguma lesão corporal, o que descarta o furto.

Porém, para continuar, precisamos de detalhes sobre o dolo do agente. Por que buscava a prótese? Se o intuito era obter a prótese por seu valor patrimonial, ainda que para uso próprio ou de terceiro, teremos o roubo. Não havendo esse intuito, parece-se correto se restringir à lesão corporal. Vamos considerar a primeira opção.

Sendo leve a lesão, pode simplesmente ser absorvida à violência do crime de roubo no caput do 157. Essa hipótese seria a opção de quem observa apenas a lesão a nervos, não comprometendo o indivíduo de forma ostensiva para além dos prejuízos que já possui em razão da amputação.

Pode-se, contudo, dizer que há lesão grave? Qual seria? (a) Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias, (b) debilidade permanente de membro, ou (c) perda ou inutilização do membro. Em qualquer dessas hipóteses, encontraríamos adequação típica no roubo qualificado, art. 157 § 3º, primeira parte, quando a violência do roubo ocasiona lesão grave.

Se a vítima pode recorrer a uma prótese nova, que venha a exercer as mesmas funções que a anterior, não me parece adequado considerar a (b) debilidade permanente de membro, tampouco (c) perda ou inutilização do membro. O cenário proposto é diferente de um braço não mecânico, pois a mudança do braço natural para uma prótese é muito significativa, por mais tecnológica que seja.

A substituição de uma prótese por outra com iguais condições de movimento é apenas o retorno ao status anterior, da mesma forma que ocorre em lesões corporais não permanentes. O mesmo não se pode dizer de um braço natural substituído por uma prótese, claro.

Dessa forma, em conclusão que só alcancei escrevendo este post, acredito que a adequação típica mais correta é a de lesão corporal na modalidade (a) Incapacidade para as ocupações habituais, seja no crime de lesão ou no roubo qualificado, a depender do dolo do agente. Isso porque a incapacidade para ocupações habituais existe involuntariamente até a aquisição da nova prótese.

Porém, se porventura a vítima não tem as condições necessárias para substituir a prótese por outra de igual nível, tendo que se contentar a uma prótese mecânica de encaixe simples, ou havendo morte dos nervos que se conectam à prótese, acredito estarmos diante da hipótese de perda de membro. Não visualizo precisão na hipótese de debilidade permanente nem mesmo com aquisição de nova prótese, ainda que mantenha parte da movimentação que já era possível com a antiga.

Isso porque há um degrau a ser considerado nas condições da vítima antes e depois da ação criminosa, e não se trata de mera debilidade porque o membro não fica avariado ou com menos funções, mas ele simplesmente não está lá.

É possível ter observado que considero a prótese como verdadeiro membro, não se tratando de analogia in malam partem. Explico.

A relação corpórea com a tecnologia nos coloca diante do questionamento sobre a própria existência, e até relativiza a noção de natureza humana. Como acertadamente coloca Tomaz Tadeu, “a existência do ciborgue não nos intima a perguntar sobre a natureza das máquinas, mas, muito mais perigosamente, sobre a natureza do humano: quem somos nós?”¹.

Don Ihde nos introduz ao conceito de embodiment [encomporamento], que é o que ocorre quando a tecnologia atua na experiência determinando-a a um modo particular de percepção, por ter se realizado através (through) dessa tecnologia².

No embodiment, a intencionalidade do corpo “amplia-se através do artefato a um mundo circundante em uma mediação tecnológica única”³. As relações de embodiment são relações que incorporam o material tecnológico na experiência corporal.

Assim, as relações de embodiment guardam um desejo profundo de serem
sentidas em total transparência. Ou seja, não se percebe a prótese como coisa acoplada, mas como extensão do próprio corpo. Assim, a tecnologia seria o próprio corpo e sentidos.

A relação da pessoa amputada com sua prótese é condicionadora de sentidos, determinando-o enquanto sujeito, desde a percepção de si para o mundo como da percepção do mundo para si. A fenomenologia, nesse sentido, a respeito dessas relações entre humanos e tecnologias não se limitam a conceber as tecnologias como mera coisa, mero artefato.

Considerar a prótese como membro, portanto, não é simples analogia. Ao contrário, a prótese é sim elemento constitutivo do corpo.

Se esse tema interessou você, ficarei feliz com sua leitura deste artigo: clique aqui.

¹ TADEU, Tomaz. Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz (orgs.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, (p. 7-16).

² IHDE, Don. A phenomenology of Technics. In: SCHARFF, R. C.; DUSEK, V. Philosophy of Technology: The technological Condition; An anthology. Oxford, Blackwell Publishing ltd, 2012. p. 507-529.

³ IHDE, Don. Postphenomenology and Technoscience: The Peking University Lectures. Albany, SUNY Press, 2009. 92 p.

 

Um comentário sobre “Retirada forçada de prótese. Furto, roubo ou lesão corporal?

  1. Cenira Júlia Fernandes Magalhães Tonon

    Gostei muito da sua abordagem. Essa discussão foi levantada por mim em sala de aula, pois se uma prótese enquanto utilizada por uma pessoa, faz parte do seu corpo, se for quebrada propositalmente por outra pessoa, ao meu ver existe uma lesão corporal. Será leve, grave ou gravíssima dependendo das consequências. Gostaria muito de aprofundar-me. Irei ler o artigo .

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