Importar sementes de maconha é contrabando?

Alguns membros do Ministério Público, ora articulador ora receptor do senso comum punitivista, tem adequado a conduta de importar sementes de maconha ao crime de contrabando.

Isso se deve ao fato de, cada vez mais, ter sido infrutífera a tentativa de aplicar a importação de sementes de maconha no tráfico de drogas. Dizer que a semente é a matéria-prima da maconha só me faz lembrar das aulas de Platão no ensino médio. Pelo menos eu, na adolescência, já conseguia compreender a diferença entre ato e potência. (Para ler mais sobre isso, aconselho o artigo do Paulo Queiroz: http://www.pauloqueiroz.net/adquiririmportar-semente-de-maconha-e-crime/)

Pois bem. Alguns promotores tem tentado aplicar, subsidiariamente, o crime de contrabando para quem importa sementes de maconha. Notória é a falta de preocupação com qualquer outra espécie de semente. Parece que a maconha realmente é a causadora dos piores males da sociedade. A criminalidade urbana deve estar baixa e não deve ter muito serviço nos gabinetes do MP…

Enfim, chega de lamúrias. Para além da estupidez de gastar dinheiro público com quem importa sementinhas de maconha, dogmaticamente, faz sentido?

Não. Vamos às razões.

A importação de mudas ou sementes para território nacional é regulada pela Coordenação de Sementes e Mudas, do Departamento de Fiscalização de Insumos e Agrícolas – DFIA, instância da Secretaria de Defesa Agropecuária – DAS do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA.

No Artigo 104 do Decreto nº 5.153/04, temos o seguinte:  Somente poderão ser importadas sementes ou mudas de cultivares inscritas no RNC, sem prejuízo ao disposto no art. 19 deste Regulamento.

Já na Lei nº 10.711/03, temos:  Art. 33. A produção de sementes e mudas destinadas ao comércio internacional deverá obedecer às normas específicas estabelecidas pelo Mapa, atendidas as exigências de acordos e tratados que regem o comércio internacional ou aquelas estabelecidas com o país importador, conforme o caso.  – Art. 34. Somente poderão ser importadas sementes ou mudas de cultivares inscritas no Registro Nacional de Cultivares.  – Parágrafo único. Ficam isentas de inscrição no RNC as cultivares importadas para fins de pesquisa, de ensaios de valor de cultivo e uso, ou de reexportação.

Assim, fato é que a importação de sementes para território nacional deve observar as exigências legais, com observância do Registro Nacional de Cultivares (RNC), que não inclui a planta da maconha nas espécies passíveis de importação.

Em uma primeira análise, portanto, parece que há o devido preenchimento da norma penal em branco (no caso, o contrabando) com as normas acima.

No entanto, o legalismo míope não pode sobrepujar-se à análise sistêmica dos bens jurídicos penalmente tutelados, sob pena de permitir-se o alargamento indiscriminado e discricionário da criminalização sobre condutas não previamente consideradas pelo legislador. Nesse caso, são válidos os ensinamentos de Zaffaroni:

Não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica destes bens. Embora seja certo que o delito é algo mais – ou muito mais – que a lesão a um bem jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade. É por isto que o bem jurídico desempenha um papel central na teoria do tipo, dando o verdadeiro sentido teleológico (de tetos, fim) à lei penal. Sem o bem jurídico, não há um ‘para quê?’ do tipo e, portanto, não há possibilidade alguma de interpretação teleológica da lei penal. Sem o bem jurídico, caímos num formalismo legal, numa pura jurisprudência de conceitos (in Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral. 3ª ed. São Paulo. RT. 2001, p. 462).

Quando não se pergunta para que a norma proíbe essa conduta, só nos resta dizer que o dever se impõe por si mesmo, porque é o capricho, o preconceito, o empenho arbitrário de um legislador irracional (in Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral. 3ª ed. São Paulo. RT. 2001, p. 466).

Toda proibição legal, principalmente penal, visa à proteção de determinado bem jurídico. No caso em específico, qual o bem jurídico tutelado na proteção advinda do RNC?

Vejamos.

O Registro Nacional de Cultivares apresenta em seu teor extenso relatório, no qual indica seus objetivos, sua importância, sua finalidade e, o mais importante, seus beneficiários. Não há dúvidas de que a proibição de importação de sementes ou mudas tem aí sua legitimidade e sua finalidade.

Nesse sentido, o bem jurídico tutelado na proibição de importação de sementes visa a uma espécie de proteção específica, resguardando beneficiários dessa política regulatória. No próprio teor do Relatório¹, temos:

  1. IMPORTÂNCIA DO REGISTRO NACIONAL DE CULTIVARES: É um instrumento de ordenamento do mercado, visando proteger o agricultor da venda indiscriminada de sementes e mudas de cultivares que não tenham sido testadas ou validadas nas condições edafo-climáticas de exploração agrícola no Brasil.
  2. FINALIDADE E ALCANCE DO REGISTRO NACIONAL DE CULTIVARES: A finalidade e alcance do registro nacional de cultivares é disciplinar a utilização de cultivares que tenham uma aplicação marcante na agricultura nacional, que reúnam as condições técnicas de serem distintas, homogêneas e estáveis e que possuam um valor de cultivo e uso – VCU, identificado.
  3. BENEFICIÁRIOS DO REGISTRO NACIONAL DE CULTIVARES: Pessoas físicas ou jurídicas que sejam obtentoras ou introdutoras de novas cultivares ou sejam detentoras dos direitos de exploração comercial de uma cultivar.

A tutela estatal visa a proteger os agricultores nacionais, protegendo-os da introdução indiscriminada de sementes e garantindo os direitos autorais da exploração e das pesquisas.

Nesse sentido, fica claro que o disciplinamento e a regulação da importação de sementes é um instrumento de ordenamento de mercado, especificamente o mercado de exploração agrícola nacional.

Em síntese, o RNC é um instrumento de proteção do mercado agrícola nacional, cujo beneficiário central é o agricultor.  Duvido que eles estejam preocupados com importadores de sementinha de maconha para cultivo pessoal.

A lei reguladora, nesse sentido, visa à proteção de patentes e o disciplinamento dessas cultivares, a fim de que se evite a produção de cultivares desconhecidas e impróprias. Não é por acaso que a norma reguladora está submetida ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Em busca no documento do RNC, o termo “saúde” sequer é mencionado, evidenciando o esforço estatal de proteger especificamente o mercado e os agricultores nacionais.

Ainda que se vislumbre a possibilidade de proteção à saúde pública, é necessário grande esforço interpretativo, restringindo-se, no entanto, à saúde dos consumidores finais da produção em larga escala de determinado produto agrícola.

Dito tudo isso…

Criminalizar alguém por importar algumas dezenas de semente de maconha – o que é feito quase na totalidade das vezes por aventureiros incautos que sequer terão capacidade de cultivá-las – não parece só estúpido, é também um equívoco jurídico e mera artimanha punitivista.

¹http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/file/vegetal/Sementes_e_mudas/Registro_Nacional_de_Cultivares.pdf

² Embora a lei apresente um conceito por demais abrangente de cultivar, o RNC apresenta uma leitura mais restritiva, indicando cultivar como normalmente se concebe na Biologia. Cultivar é normalmente entendida como a derivação de uma cultivar selvagem, com modificação elaborada por ser humano, fruto de pesquisas, com objetivos de produção e reprodução para consumo em grande escala, que tenham o condão de afetar o comércio e o mercado brasileiro.

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