O professor Afrânio Silva Jardim publicou em seu facebook (1) um pequeno texto sobre a conformidade constitucional do art. 385 do CPP, no sentido de que o MP, em alegações finais, apenas opina sobre a pretensão punitiva estatal, cabendo ao juiz condenar ou absolver o réu ainda que o MP se manifeste pela não condenação.
Poucos dias depois, o professor Paulo Queiroz publicou um texto no Empório do Direito (2) argumentando que o art. 385 não foi recepcionado pela CF/88, de modo que o juiz deve se vincular ao pedido de absolvição do MP ou, se discordar, invocar analogicamente o art. 28 para remeter os autos ao PGJ ou à CR para manifestação definitiva do MP. Em seu texto, cita diversos autores para mostrar o dissenso doutrinário a respeito desse tema tão polêmico.
Estou ao lado de Paulo Queiroz, Aury Lopes Jr., Badaró e tantos outros, que não vislumbram a possibilidade de um juiz condenar um réu havendo manifestação expressa do titular da ação penal pela absolvição.
Neste post, não pretendo reproduzir as razões desses autores, pois já o fizeram muito bem, principalmente a respeito do que significa a titularidade da ação penal, da diferença entre pretensão acusatória e pretensão punitiva, do que seria o modelo acusatório etc. Porém, quero ainda registrar algumas considerações que acho relevantes para essa briga doutrinária.
O argumento que subjaz à possibilidade de um juiz condenar um réu mesmo havendo manifestação expressa do MP para absolver não está nos tecnicismos processuais.
É pouco útil a argumentação de onde está ou não o verdadeiro pedido para condenar, se já estaria na denúncia ou se estaria nas alegações finais – embora eu ache absurdo crer na tese de que o pedido já estaria na denúncia, uma vez que é insustentável juridicamente um pedido de condenação sem provas produzidas.
O cerne da questão é o seguinte: o processo apresenta uma narrativa autônoma, para além das partes ativas no processo?
Somente a crença (crença porque depende de fé) da falecida e falaciosa ideia de verdade real (ou material, que é a verdade real travestida de falso garantismo) permitiria o “sim” como resposta para a pergunta acima.
O Direito é a única área do conhecimento que ainda crê na ideia de verdade real, já enterrada inclusive nas áreas das ciências exatas, que já reconhecem que o sujeito da relação científica é ativo, tendo influência subjetiva, na formação da conclusão de uma observação.
Permitir ao juiz a invocação de uma narrativa autônoma do processo é retirá-lo da condição de imparcial, uma vez que o retira de sua inércia devida e o coloca como parte ativa a atuante no processo.
Esse quadro se acentua quando ao julgado é facultado a produção de provas, trazendo o ônus da prova para si e reduzindo a tutela exclusiva da ação penal do MP a mero apêndice do poder jurisdicional. A concentração de atos processuais é o próprio cerne do modelo inquisitorial, que aniquila a imparcialidade do julgador e reduz a defesa ao plano burocrático e protocolar, mera forma, mero discurso de encobrimento de sua parcialidade.
O processo (democrático, claro) não se destina à produção da verdade real, mas à construção de uma narrativa que visa a convencer o julgador. A verdade processual é, tão somente, aquela que o juiz diz que é, devendo limitar-se a justificar porque a narrativa de uma parte é mais coerente que a da outra.
Se o próprio órgão acusador, aquele que tem o dever de provar o que alegou na inicial, sustenta que não conseguiu provar o alegado, deixa de existir qualquer narrativa capaz de lastrear uma sentença condenatória.
É possível um processo sem alegações finais? Para quê elas servem? É justamente o momento no processo que se monta a narrativa, com os elementos de prova produzidos (ou não), que permitirão ao juiz basear sua condenação ou absolvição. Sem essa narrativa, o juiz teria de recorrer à verdade real, existente no plano das ideias, numa ontologia platônica que, na realidade, é tão somente a manifestação da parcialidade do julgador.
Na crença da verdade real, a defesa se vê em uma luta extraprocessual, sem espaço efetivo para se manifestar.
Aliás, aceitar a ideia de que o juiz pode condenar mesmo com pedido de absolvição do MP nos autoriza a pressupor que o julgador já estaria com a convicção formada antes mesmo do fim do processo, o que, por si só, já seria elemento suficiente para questionar a imparcialidade do julgador.
Em síntese, não se trata de dizer que passa ao MP a competência para condenar ou absolver, mas de dizer que o juízo é dependente materialmente das narrativas formuladas pelas partes, não estando ele autorizado a entrar como terceira parte no processo e criar uma narrativa própria, sustentada, no fim das contas, numa fantasia identificada como verdade real.
http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-pedir-absolvicao