Um exercício de predição com base em elementos presentes – ou – O risco de um novo golpe militar

É impressionante como o nome Mourão não assusta.

Mourão Filho liderou o golpe de 1964 e foi o criador do falso plano Cohen, que serviu de desculpa para o golpe de Getúlio em 1937. 54 anos depois, outro Mourão joga um verde pra sociedade, no intuito deliberado de sentir o apoio da população para eventual novo golpe militar.

No Rio de Janeiro, a operação do exército na Rocinha vai acabar servindo de teste e seu “sucesso”, com apoio da mídia, pode ser utilizado para justificar mais intervenções militares. Elas serão inicialmente pontuais, juridicamente justificadas, para, depois, alastrarem-se em direção a um controle central do Executivo, apoiado por um presidente refém das forças militares. Havendo um presidente reativo, tem-se a justificativa completa para a tomada formal da presidência.

Tudo isso amparado por uma interpretação forçada do art. 142 da CF, plantada pelos próprios militares na constituinte como condição sine qua non para a democratização. A semente plantada está florescendo.

O ministro do STJ Og Fernandes achou inocente a enquete “imparcial” que lançou a seus seguidores se seriam a favor da intervenção (sic) militar. Quase 100 mil pessoas participaram e 49% foi a favor… É assustador.

Quem conhece nosso Judiciário sabe que ele convive bem com o regime ditatorial militar. Nenhuma surpresa. Não acho que exagero ao dizer que o Judiciário é o mesmo desde então.

E o MP? Onde estará? Será que ele vai cumprir sua missão constitucionalmente atribuída?

Acho que o MP chancela eventual golpe desde que tome pra si mais poder. E já estamos vendo os sinais dessa troca de reverências. Um governo militar com apoio do MP parece a roupagem perfeita para deslegitimar a narrativa de ditadura.

Uma nova ditadura viria judicialmente forte, com protagonismo do MP e com chancela do Judiciário. Ela viria na toada crescente de crimes abertos como “obstrução da justiça”, organização criminosa, desobediência, tráfico de drogas e outros.

Seria operada pelos institutos da delação premiada, infiltrações de militares nos mais diversos setores, prisões preventivas, provas ilícitas flexibilizadas, restrições ao habeas corpus e, claro, operada pelo novíssimo acordo de não-persecução penal, outorgado pelo MP a si próprio. Se o MP se concede poderes hoje, imagina debaixo de um governo autoritário?

Teremos juízes perseguidos, como o Luis Carlos Valois e Kenarik Boujikian, apenas por fazerem seu trabalho.

As PMs, como já fazem nos crimes de drogas, conduzirão investigações sem que haja qualquer instrumento formal para posterior análise. Os autos, se existirem, serão sigilosos e ficarão a cargo dos oficiais da PM com o suporte dos membros do MP, com quem trabalharão conjuntamente.

As PMs poderão conduzir inquéritos, pauta que vem sendo conquistada de pouco em pouco. Já podem fazer Termos Circunstanciados sem necessidade de intervenção de delegados. Nisso, é claro, contam com o apoio quase incondicional do MP. A única contrapartida para esse poder concedido é a manutenção do controle da PM pelos próprios promotores, que já se uniram contra os delegados.

Delegados continuarão fazendo o que fazem, e se aprofundarão na lógica burocrática e acrítica, se valendo cada vez mais da condição de “polícia” que de “jurista”.

A atuação do Exército será menos generalizada e mais pontual, como está sendo na Rocinha, com poder típico de polícia. As ações policiais do Exército receberão a chancela da Justiça Militar da União que, finalmente, não se sentiria mais um peixe fora d’água, voltando a sentir o conforto do lar de outrora. Teremos um boom de civis sendo julgados na JMU.

E os advogados? Já se inicia na mídia o processo de criminalização da advocacia criminal. Exemplo mais recente é o advogado do Lula, responsabilizado por produzir documentos falsos na defesa de seu cliente. Julgados antigos e recentes serão retomados, cujo teor garante a legitimidade de devassa das ligações com os clientes, entrada em escritórios e interceptações telefônicas.

Começará assim, primeiro serão considerados suspeitos por defenderem seus clientes, depois serão investigados e, por fim, serão criminalizados em algum tipo penal aberto, como obstrução da justiça.

A OAB vai conviver em paz com o novo regime, tal como fez em 1964. Isso porque seus interesses se revelam cada vez mais corporativos e não republicanos, como deveria ser. A estrutura estará montada pra receber na OAB um alto comissariado leniente e preocupado em sua própria manutenção. Quando a coisa começar a ficar feia com os advogados, a ordem vai tentar intervir e buscar a lembrança perdida da função de resistência democrática da advocacia, mas sem deixar a hipocrisia de lado.

Nesse cenário, demos graças à existência de Bolsonaro. Fosse um líder respeitado dentro das Forças Armadas, teríamos já perdido. Tivesse ele inteligência, poder de manipulação e histórico militar, como os presidentes da ditadura, eles não teria tanta rejeição social.

A existência de Bolsonaro ofusca o surgimento de um líder que lhe suplante espaço, o que não pode deixar de ser algo positivo e um resquício de esperança. Ele e seus bolsomínions fazem questão contínua de mostrar a ignorância de onde partem, de mostrar a estupidez caricata de um fascismo ressentido. Em uma das hipóteses, será lembrado como o responsável por atrasar o golpe.

Espero estar equivocado.

Num próximo post, falarei do fascismo “a brasileira” e porque ele tem se erguido com perigosa força em solo pátrio.

Mais um passo ao fim do desacato

O STJ, talvez com intenção, deu um passo largo em direção à descriminalização do desacato.

Se tem um argumento que me irrita, levantado pelos defensores da manutenção do desacato, é o velho e curinga “nenhum direito é absoluto”. Se referem ao direito à liberdade de expressão.

O óbvio é quase sempre desnecessário. E, às vezes, como nesse caso, o óbvio é levantado para infantilizar o argumento contrário, fazendo sugerir que a outra parte defende algum tipo de absurdo.

A Rita Lee proferiu ofensas diretas a policiais militares que prenderam em flagrante um sujeito que portava maconha em um de seus shows. Chamou os policiais de “cachorros”, “cafajestes”, e relembrou os tempos de enfrentamento na ditadura, chamando seu público a vaiar os policiais presentes.

Não houve, contudo, flagrante por desacato! O que houve foi punição à cantora pela via civil, a título de danos morais. No caso, a cantora deverá pagar 5 mil reais a um policial.

A decisão, embora eu pessoalmente discorde – pois me convenci de que a cantora não se dirigia ao policial em si -, é coerente com as diretrizes conservadoras antiliberais da corte. Veja trechos da decisão (REsp 1.677.524-SE, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 3/8/2017, DJe 10/8/2017):

As ofensas generalizadas proferidas por artista a policiais militares que realizavam a segurança ostensiva durante show musical implicam dano moral in re ipsa, indenizável a cada um dos agentes públicos. (…) Calha ressaltar que a generalidade da crítica proferida atingiu a cada um de forma individuada, porque foram, pessoalmente, aviltados enquanto atuavam nos limites legais impostos, e sob ordens expressas de seus superiores. Nesse cenário, a contraposição a uma legítima atuação dos policiais militares, pela artista, de maneira exasperada e extremamente ofensiva que, confessadamente proferiu injúrias contra todos os militares presentes ao show, erige-se como o primeiro pilar necessário para a caracterização do dano moral indenizável: a antijuridicidade da conduta praticada. (…) É inegável também que as injúrias proferidas repercutiram de forma mais retumbante no imo daqueles policiais, pois vieram de uma pessoa pública, que tem reconhecida capacidade de influenciar e formar opiniões, razão pela qual, maior cautela se exigiria de suas manifestações. (…) De se dizer, por fim, que o direito de criticar a atuação de agentes públicos no exercício de suas atividades, não pode ser exercido sem limites, a ponto de chegar a configurar uma injúria, ilícito que tem potencial para causar dano e, por conseguinte, passível de compensação, mormente quando não se demonstra, cabalmente, que a atuação policial aviltada, foi desnecessária ou com o uso excessivo e desproporcional de força.

A questão é simples.

O que se defende com o fim do desacato é o reconhecimento de que a lesão da ofensa é dirigida à pessoa, não ao Estado! 

Não é possível que ainda temos esse resquício dos tempos do absolutismo de ofensa à coroa.

Como tenho dito. O desacato não protege bem jurídico algum. Apenas dá poderes para o policial agir de forma discricionária quando achar necessário. É um instrumento típico de regimes autoritários, que amplia as possibilidades de uso da força pelos agentes da repressão estatal. A honra do agente fica em segundo plano e o policial efetivamente ofendido jamais verá qualquer tipo de reparação.

O STJ, com a decisão, demonstrou que é possível sim a restrição da liberdade de expressão (que, óbvio, não é absoluta). Além disso, demonstrou que a reparação do dano pela via civil,pode ser muito mais eficiente e menos danosa que pela via penal.

O policial sai ganhando e a democracia também.

Veja mais nos links:
https://jota.info/justica/rita-lee-tera-de-indenizar-policial-de-sergipe-03082017
https://deusgarcia.wordpress.com/2017/04/27/crime-de-desacato-e-inconstitucional/
https://jota.info/artigos/supremo-deve-apreciar-a-constitucionalidade-do-desacato-26042017

O MP quer dividir o bombom e escolher o pedaço

Eis que o MP quer ter as funções de legislar e de julgar.

O Ministério Público resolveu dar uma de legislador. Dia 6 de setembro de 2017, o CNMP publicou a Resolução 181, de 07.ago.17, que prevê uma série de faculdades e poderes ao Ministério Público em matéria processual penal.

A resolução concede (sic) poderes ao MP de negociar com investigados e indiciados a possibilidade do não oferecimento de denúncia, até então compreendida como obrigação legal, por força do nosso Código de Processo Penal. O preço a se pagar é da nossa frágil democracia.

Não será necessário que o Judiciário tenha qualquer interferência no acordo estipulado, tampouco ciência, subtraindo-o da possibilidade de qualquer controle de legalidade. Trata-se da privatização do Direito Penal e do Processo Penal, numa importação forçada de valores e práticas estrangeiras.

A verdade é que o Ministério Público está dando os primeiros passos para a autocoroação de magistratura, em que as definições sobre as penas aplicadas – inclusive no cárcere – independem do poder Judiciário, bastando um acordo firmado com investigados. Em breve estaremos diante de variadas formas de punição sem qualquer respaldo legal.

Mas antes de entrar no mérito da resolução, se boa ou má, há de se apontar sua absoluta inconstitucionalidade.

Um dos principais alicerces de um Estado de Democrático de Direito é a ideia de que um órgão não pode dar poder a si próprio. O Estado precisa criar mecanismos de contenção do poder, limitando-se a si mesmo para impedir que um ente ou órgão prevaleça frente os demais. Essa é uma das principais armas contra o avanço de um regime ditatorial.

Até criança entende. Quem divide o bombom não pode escolher o pedaço.

Nem mesmo as Assembleias Legislativas dos Estados podem legislar sobre matéria processual penal.

Vejo isso como mais uma consequência da Lava Jato e o manto de heroísmo e de salvador da pátria que o MP se outorgou. Aproveitando o amplo reconhecimento que tem tido perante a sociedade e o vácuo de legitimidade do nosso legislativo, o MP politizou-se, afastando-se cada vez mais do direito.

O MP tem mostrado uma homogeneidade perigosa e tóxica pra democracia. Um debate sobre os poderes do Ministério Público no Congresso, mesmo sendo o que é, levantaria o contraditório mínimo necessário para uma aprovação legítima de uma alteração de poderes dessa envergadura.

No mérito, devo dizer que até acho positivos alguns itens da resolução, mas há pontos extremamente problemáticas em seu texto. Vamos a alguns exemplos.

Art. 18. Nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal, desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento, além de cumprir os seguintes requisitos, de forma cumulativa ou não:

Neste artigo, para celebração do acordo de não persecução, o MP exige que o indiciado abra mão do princípio da não autoincriminação. Em outras palavras, o MP força o indiciado a produzir provas contra si mesmo.

Isso abre uma série de questões, mas a principal é: havendo descumprimento do acordo, vindo o MP oferecer denúncia, essas provas poderão ser usadas?

Por óbvio que o MP acredita que sim. Será um processo já morto, com contraditório sequer mitigado, mas totalmente impossibilitado. Uma via expressa pra condenação.

Olha aí o problema: As medidas despenalizadoras, como o sursis e a transação penal, não forçam o acusado a produzir prova contra si mesmo ou se declarar culpado. Aliás, o sursis e a transação penal pressupõe a manutenção do status de inocente do acordante.

Podemos até questionar se o princípio da presunção da inocência é efetivado no sursis, mas fato é que a lei foi clara ao tentar preservá-lo.

No acordo de não persecução, o acusado deverá declarar-se culpado. Mais do que isso, deverá produzir as provas que o incriminem.

Deixo os questionamentos: esse sujeito será considerado inocente? Há culpa sem trânsito em julgado de sentença condenatória? Esses acordos poderão ser usados contra o sujeito em outros processos em que for acusado formalmente?

Vamos a mais um absurdo:

5º O acordo de não-persecução poderá ser celebrado na mesma oportunidade da audiência de custódia.

Fato é que a Audiência de Custódia não foi bem recebida por nossos promotores. Eles preferem a frieza dos autos. Preferem que o preso não tenha contato direto com a Justiça. Pra maioria deles, a Audiência de Custódia deveria ser, no máximo, um encontro às escuras com o preso e os policiais que fizeram a prisão, sem delegado envolvido de preferência.

Não faltam esforços do MP em desvirtuar as finalidades da Audiência de Custódia. Muitos querem aproveitá-la para produção de provas. Um absurdo. Sabemos bem que é nas primeiras horas após a prisão que o sujeito está mais vulnerável. O contato com o advogado é limitado e o sujeito acaba falando um monte de impropriedades que podem prejudicar e muito sua defesa no processo.

Abusar dessa fragilidade pós prisão em flagrante é um grande mérito para muitos delegados e policiais incompetentes que não tem nenhum compromisso com o regime democrático.

Enfim, a depender do MP, a Audiência de Custódia vira Audiência de Conveniência e Eficiência Punitiva.

Pra terminar:

7º O descumprimento do acordo de não-persecução pelo investigado, também, poderá ser utilizado pelo membro do Ministério Público como justificativa para o eventual não-oferecimento de suspensão condicional do processo.

Embora apresente certa controvérsia, o entendimento geral é que o MP não pode deixar de oferecer o sursis quando ele for cabível.

A resolução, portanto, cria uma hipótese legal (sic) de não aplicação do sursis.

Quem leu bem a resolução entendeu. Ela mata instituto do sursis. A resolução, na verdade, deveria ser intitulada “Regras para o novo Sursis” ou “A revogação do Sursis”. A principal diferença, reitero, é a obrigação de produção de provas contra si mesmo e a declaração de culpado.

Eita MP, quanta vontade de ser Batman…

Qual a relação do Habeas Corpus com a Audiência de Custódia?

Quase dois anos atrás, publiquei o primeiro post deste blog.

Nele, falei que a genética da Audiência de Custódia estava no habeas corpus. Defendi a tese de que a Audiência de Custódia é que efetivamente guarda a importância histórica, política e jurídica desse importante remédio constitucional.

O post segue no link abaixo e já foi acessado quase 1000 vezes, o que me mata de orgulho.

https://deusgarcia.wordpress.com/2015/10/28/a-historia-da-audiencia-de-custodia/

Finalmente, desenvolvi o texto do post e virou um artigo, que foi publicado no Conpedi. Segue o link:

https://www.conpedi.org.br/publicacoes/roj0xn13/9t8274u3/7D6jrNRVTtrHY4NW.pdf

Não vou apagar o post original, mas vale mesmo a leitura do artigo!