E quando aquele que deve te proteger é o mesmo que cede as armas pra te bater?

Um Juiz da VIJ do TJDFT autorizou que a PM utilizasse técnicas de tortura contra ocupação estudantil.

Qualquer cidadão tem garantias fundamentais que o protegem contra o abuso e a violência do Estado. Essa proteção, quando necessária, deve ser garantida pelo judiciário. No caso das crianças e dos adolescentes, a Constituição Federal de 1988 instaurou a doutrina da proteção integral que, substituindo a antiga ideia de “situação irregular dos menores”, impõe como dever de todos a proteção ao jovem, garantindo-os direitos básicos, tais como à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. É o que prescreve o art. 227 da CF/88.

Essa proteção, inclusive, deve ser realizada com prioridade absoluta, ou seja, sobrepondo-se a quaisquer outros interesses, não importando sua natureza.

Mesmo sobre essa plataforma jurídica, sem qualquer constrangimento, um juiz da Vara de Infância e Juventude do TJDFT, justamente quem mais deveria estar atento na defesa desses jovens contra o abuso e a violência estatal, autorizou a Polícia Militar a utilizar técnicas de tortura contra jovens que ocupavam escola pública em Brasília.

O juiz permitiu que a polícia: a) suspenda o fornecimento de água, energia e gás; b) acesso de terceiros, em especial parentes e conhecidos ao local; c) acesso de alimentos ao local; d) uso de instrumentos sonoros contínuos voltados para os estudantes;

A decisão foi em um processo que apura eventual prática do crime de Abandono Material, que protege as crianças de privação da subsistência. Curioso. Irônico. A decisão parece enquadrar-se no tipo penal.

A decisão não somente castra direitos fundamentais, como autoriza a própria Polícia Militar a agir com instrumentos danosos à saúde desses jovens. Algumas das técnicas autorizadas são, inclusive, mecanismos de tortura internacionalmente reconhecidos, tais como a privação de água e alimentos e a privação do sono por meio de instrumentos sonoros. São técnicas comuns em situações de exceção e de suspensão da ordem jurídica, vedadas até mesmo para criminosos de guerra.

Não só isso, a decisão mitiga também o direito à livre manifestação, à expressão do pensamento e, mais importante, o desenvolvimento educacional dos jovens, que enfrentam um momento de politização importante na história do país. Independentemente do posicionamento político dos jovens, é importante compreender a manifestação como uma expressão política possível dentro de um espaço democrático, o que deve ser estimulado e garantido pelo judiciário.

A voz dos estudantes é essa. É a ocupação que incomoda e que chama a atenção. Quem diz que é possível se manifestar de outro jeito, na verdade, quer levar os jovens a um espaço com nenhuma visibilidade; quer, tão somente, silenciá-los.

A decisão, portanto, não só viola explicitamente a CF/88 como dá carta branca para uma Polícia Militar que, absolutamente, não está preparada para lidar com esse tipo de manifestação. Há grande risco de a manifestação, até então pacífica, findar-se com abuso de violência, prisões desnecessárias e lesão à integridade física e mental dos jovens.

A PM precisa assumir de vez que o “diálogo” com instrumentos de repressão preparados e prontos para uso é falso, é discurso legitimador barato. “Sai daí antes de levar porrada” não é diálogo, é ameaça. Não se deve tolerar essa hipocrisia.

O mais grave nesse cenário, no entanto, é o próprio respaldo do judiciário. Não há mais a quem recorrer.

O fato de o diálogo ser substituído pelo uso da força policial por um juiz que deveria garantir os direitos fundamentais desses próprios jovens permite-nos questionar, sem dúvida, o verdadeiro papel do judiciário em defender um Estado Democrático e plural.

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